O imaginário de Cubatão ganha o palco da vida

Coletivo 302 recria a história da Cidade

Por: ATribuna.com.br  -  27/04/24  -  14:00
Atualizado em 29/04/24 - 13:24
O espetáculo Vila Parisi, que retrata o enclave na área industrial da Cidade, nos anos 1970 e 1980, é a primeira peça da trilogia Zanzalá
O espetáculo Vila Parisi, que retrata o enclave na área industrial da Cidade, nos anos 1970 e 1980, é a primeira peça da trilogia Zanzalá   Foto: Sander Newton/Divulgação

Há um teatro em que o espetáculo é as pessoas. Suas lembranças e dramas. Emoções e esperanças. Ou a cidade em que se sofre e sonha. Seria um clichê falar que a vida imita a arte. Já o contrário apenas resume o trabalho dramático do Coletivo 302, em Cubatão. Pois é da reconstituição do incêndio da Vila Socó, ocorrido há 40 anos (veja ao lado), que nascerá a próxima peça do grupo, a ser encenada em setembro.


“O espetáculo pretende trabalhar a relação de memória e esquecimento, das feridas da tragédia, e confrontar a narrativa oficial, de abafamento, com a narrativa das pessoas. Para saudar as que sobreviveram e todas que morreram e não foram contabilizadas pela história”, explica Sander Newton, 36 anos, ator e pesquisador do coletivo, especializado em fotografia.


A peça Vila Parisi, encenada a céu aberto na Praça do Cruzeiro, venceu o Prêmio Shell de Teatro em 2023
A peça Vila Parisi, encenada a céu aberto na Praça do Cruzeiro, venceu o Prêmio Shell de Teatro em 2023   Foto: Andrey Haag/Divulgação

Porém, Vila Socó é apenas uma das paradas de um roteiro mais amplo, o projeto Zanzalá, iniciado em 2018, que integra outras duas obras para resgatar e eternizar a memória de Cubatão, a partir da história de três vilas operárias que construíram a Cidade. O primeiro espetáculo, de 2019, foi o Vila Parisi, que venceu o Prêmio Shell de Teatro, um dos maiores do segmento no Brasil, ano passado.


Como o nome sugere, a peça se debruça sobre o bairro operário encravado na área industrial, na Cubatão dos anos 70 e 80, quando a Cidade era conhecida como Vale da Morte por ser a mais poluída do mundo. O projeto ainda irá esmiuçar a Vila Fabril, a mais antiga, criada nos anos 20 para acomodar os trabalhadores da Companhia Fabril de Papel.


“Estamos fazendo o projeto como as tragédias gregas, com três tragédias, depois encerrando com uma peça satírica, com a encenação em 2028 de Zanzilá, de Afonso Schmidt”, conta Sander. Nessa obra de ficção científica, escrita em 1928, Schmidt descreve como seria Cubatão em 2028: terra avançada, abrigo para todos os povos do mundo. “Na nossa versão, podemos projetar a Cidade em 2128...”.


Mais uma cena da encenação, feita a céu aberto
Mais uma cena da encenação, feita a céu aberto   Foto: Fernanda Luz/Divulgação

Ampla pesquisa
Se a arte resgata e atualiza a História, para que se concretize a obra é preciso um trabalho minucioso de pesquisa sobre os fatos. Esse é ponto de partida do Coletivo 302 para desenvolver os espetáculos. A busca sobre a tragédia da Vila Socó começou pela imprensa, nos jornais, na tevê, estendeu-se ao Judiciário, nos inúmeros processos do caso, e ao Legislativo, em audiências públicas que confrontam as versões oficiais.


Por fim, chegou às pessoas que, direta ou indiretamente, sofreram ou tiveram participação na tragédia. Nessa parte, a pesquisa expandiu-se para abarcar as histórias pessoais, as origens, a família e o que os levou para lá. Participaram das entrevistas bombeiros, políticos, assistentes sociais, sobreviventes e familiares de vítimas. Até a mãe do diretor do espetáculo, Douglas Lima, moradora da Vila Socó, deixou o seu depoimento.


“Reconstituímos os fatos cronologicamente. Montamos um mural, ligando pontos e situações, como uma investigação criminal mesmo”, resume Sander.


O processo
Como transformar notícias e as histórias das pessoas em um espetáculo? Primeiro, construíram cenas a partir do que estava nos jornais ou documentários.


“Levantamos 41 cenas com o documental. Também ficcionalizamos. Será um documentário ficcional, até para distanciar da crueza do fato histórico, para não gerar gatilhos nas pessoas”, explica Sander. “O fogo, por exemplo: não vamos trabalhar com ele, mas ele estará o tempo todo presente, seja no cenário, no figurino ou na iluminação”.


Assim como em Vila Parisi, cuja encenação ocorreu na Praça do Cruzeiro Quinhentista, em frente à Petrobras, para utilizar o panorama das indústrias ao redor como cenário da peça, Vila Socó será encenada no próprio bairro onde ocorreu a tragédia, hoje chamado de Vila São José. De tal forma, que as ruas e vielas vão elas próprias se transformar em personagens da montagem. A princípio, serão 10 sessões, em setembro e outubro.


“Podemos adaptar para o palco, mas queremos que as pessoas venham para cá, assistir à história daqui onde ela ocorreu”, afirma Sander e reforça o caráter de todo o projeto. “A gente não consegue construir um imaginário sem passar por nossas dores, sem o conhecimento da História”.


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