Livro com frases ao contrário será lançado neste sábado em Santos

Brincadeira em família se transformou em livro, cujo ‘personagem principal’ são palíndromos

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  28/03/24  -  13:31
O palíndromo faz sentido mesmo se lido de trás para a frente
O palíndromo faz sentido mesmo se lido de trás para a frente   Foto: Divulgação

Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos. Calma, não é preciso ficar em pânico: esse ônibus é da linha palíndromo, bem democrática, dá para subir pela frente e por trás. O motorista, aqui, é o publicitário Ercílio Tranjan, que sábado (30) lança em Santos O Livro dos Palíndromos de Gibrael – A Vida Tem Sentido... De Trás pra Frente (Editora Papagaio), coletânea de pequenos contos construídos ao redor de frases que podem ser lidas igualmente de frente para trás e de trás para frente – como a que abre esta reportagem.


“Critico os palíndromos sem sentido. Por isso, pensei: têm que caber em uma história”, esclarece Ercílio. No livro, são 37 histórias – uma para cada um dos 37 palíndromos, todos com uma origem muito especial: a família.


“É uma história meio maluca: quem me apresentou o palíndromo foi o meu amigo Pedro Bandeira, o escritor de histórias infantis, nos anos 90. Estávamos andando pela (Avenida) Marechal Deodoro, conversávamos, ele falou de palíndromos, eu fiquei fascinado”.


Ercílio contou a boa nova ao irmão mais velho Gabriel e a fascinação expandiu-se. Logo, também já estavam contaminados os filhos de ambos, e as reuniões em família se transformaram em verdadeiros campeonatos de palíndromo. “Eu brinco, de que essa fascinação tenha a ver com nossa origem árabe, de ler da direita pra esquerda”.


Apesar da grande prática na confecção de palíndromos, Ercílio desconhece existir alguma técnica que facilite o processo. “Não há uma ‘chave’; mas para palíndromos fáceis, com três palavras, uma dica é usar ‘é’. Ou uma palavra que em si mesma é palíndromo, como ‘ama’, ou ‘ave’ com ‘eva”.


Emoção
De certa forma, o livro nasceu da dor para celebrar o amor. A ideia começou a germinar após a morte de Gabriel, em 2000. A obra é uma homenagem vinda do coração de Ercílio, a começar pelo nome do personagem principal dos contos: Gibrael, referência direta ao irmão.


“Sempre fui apaixonado por ele, aprendi muito com ele”, emociona-se. Ercílio está prestes a completar 80 anos; Gabriel teria 82. Completa a família uma terceira irmã, mais velha, que mora em Santos.


Boa parte dos palíndromos incluídos no livro é obra de Gabriel. À luz dos contos, eles dão a cada trama o desfecho perfeito, a ‘moral da história’. Quanto à prosa em si, é fácil notar a inspiração em contos clássicos árabes, como os das Mil e Uma Noites. O último deles, Uma Nova História em Três Tempos, de Gibrael por Gibrael..., pelo tema e costura, nada deve a Jorge Luis Borges – que também bebeu na fonte da Literatura Árabe.


“De certa forma, tem esse toque árabe. Tem algo de Malba Tahan (pseudônimo de Júlio Cesar de Melo e Sousa, autor de diversos livros ambientados no Oriente, entre eles o clássico O Homem que Calculava)”.


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Ercílio saiu de Santos em 1962 para estudar Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, na Rua Maria Antônia, na Capital. “Fernando Henrique Cardoso foi meu professor, mas eu nunca terminei o curso”. Havia a publicidade no meio do caminho.


“Escrevi um trabalho de política sobre o Jânio Quadros, pelos símbolos que ele usava, como a vassoura. Um grande amigo meu disse: ‘você tem que trabalhar em propaganda’”. Ercílio foi. Era 1965. Como ele mesmo diz, acabou desviado do “bom caminho”. Talvez para um caminho melhor: como publicitário, participou de campanhas emblemáticas nos anos 70 e 80, e por uma delas, do Fiat na Itália, com o jornalista Reali Jr., ganhou um Leão de Ouro em Cannes.


A escrita, porém, sempre acompanhou Ercílio, fosse na paixão pela poesia ou nos minicontos, com os quais chegou a vencer um concurso da Revista Piauí, cuja proposta era escrever uma história com seis palavras, inspirada no conto Tristíssimo, de Ernest Hemingway: “à venda: sapatinho de bebê nunca usado”. O conto vencedor de Ercílio abordava o assassinato de pessoas LGBTQI+: “Saiu do armário para o caixão”.


Mas o assunto, aqui, são os palíndromos, palavra originária do grego, cujo significado é ‘trajeto inverso’. Seja qual for o caminho, todos levam à Realejo Livros (Av. Marechal Deodoro, 2, Gonzaga), sábado, às 16 horas. O Livro dos Palíndromos de Gibrael – A Vida Tem Sentido... De Trás pra Frente é ilustrado pelo também publicitário Hélio de Oliveira, custa R$ 68,00 no site.


Dois contos
“Humilhado de ceca em meca, quis expressar minha mágoa em versos. Consternado, descobri que não era nenhum Álvaro de Campos, que meu inventor não era Fernando Pessoa. Assim, incapaz de escrever um poema em linha reta, tudo que fiz foi gritar meu ódio, até pelo avesso: ÓDIO DOIDO, ÓDIO MOÍDO, ÓDIO DOÍDO”


“Ainda jovens, e tendo que ganhar o pão, meu amigo Gibrael e eu aceitamos trabalhar para o poderoso Senhor Natan, conhecido por sua riqueza e crueldade. Certo dia, ele decretou: “De hoje em diante, não haverá mais dia de descanso ou de lazer, que isso é pura preguiça”. No pátio, não se ouvia sequer um balido. Mal refeito do susto, protestei que aquela violência agredia todas as leis, humanas e divinas. Que era a volta à escravidão. Otto, o lacaio mais próximo de Natan, a quem só faltava a coleira, reagiu aos berros. Primeiro, como bota: “Infiel, ingrato, subversivo, vagabundo!”. Depois, como capacho: “O Senhor Natan só nos faz o bem”. Enquanto Otto sabujava, escrevi num papel a palavra SERVIL e mostrei-a a Gibrael, que logo a leu ao contrário: LIVRES. Então, nos levantamos para sair em busca da liberdade. Antes, a voz tonitruante de Gibrael se fez ouvir, calando Otto: “SERVIL SÓ ACATA. E ATACA OS LIVRES”.


Árabe
A influência da narrativa árabe já se revela no início do texto, com a apresentação: “Teria sido nossa primeira conversa? É a primeira que me vem à lembrança. E não esqueço. Gibrael me falava de sua paixão pelas palavras. Na verdade, por uma palavra em especial. Nem sei se ele falava para mim, para ele mesmo ou se discursava para as estrelas. Só sei que foi a única vez que o ouvi sem que ele dissesse um palíndromo. Dessa noite em diante, essa palavra se fez presente em todas as suas histórias”. A palavra em questão é Salamaleque, derivada em português de Salaam Aleikum: “Que a paz esteja convosco”.


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