Guilherme Arantes abre o coração para falar de suas origens, relação com Santos e trajetória

Em entrevista, cantor e compositor relatou episódios de sua carreira, música, tecnologia e muito mais

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  11/04/24  -  20:59
  Foto: Divulgação

Aos 70 anos, Guilherme Arantes está vivendo, de fato, o seu lance legal. Com novos projetos, também nas redes sociais, longe da badalação exaustiva, o sucesso é de outro tipo, pessoal, muito mais cheio de charme. Hoje, no Teatro Municipal Braz Cubas, com ingressos esgotados, o cantor, e especialmente compositor, como ele se define, traz um pouco de seu mundo e nada mais, nessa trajetória de 50 anos entre êxtases e pedacinhos. Nesta entrevista, Guilherme abre o coração e a alma para falar de suas origens, que também definiram a sua rota musical, além de comentar e analisar o panorama da música atual, em relação ao passado, mas com a plácida certeza de que, para si, o amanhã já é um lindo dia.


Você tem canções marcantes na voz de outros intérpretes, além da sua própria e vitoriosa carreira como artista. Você se vê mais como compositor ou cantor?


Muito mais compositor. Isso veio do meu pai. Ele era médico, mas tocava muito bem o violão, nível Baden Powell, tinha um ouvido fantástico. Escutava muita música erudita e popular, colecionador de discos da bossa nova era entusiasta dos Beatles. Fui criado numa casa em que rolava música o tempo todo, era uma obsessão, não só do meu pai, mas dos meus primos também. É um dom da família, do lado dos Lima Verde, lá do Crato, no Ceará. Não por acaso, meu primo, Solano Ribeiro, foi produtor dos festivais da Record, nos anos 60. Esse ambiente familiar me fez desde muito cedo querer ser um compositor, pois meu pai sempre dizia que a figura mais importante de todas é sempre o compositor.


Por que o seu pai foi médico e não músico?


A mãe dele não deixou. Isso foi um grande trauma, mas na geração dele, ele nasceu em 1919, essa profissão era mal vista, era da boemia. Então eu fui criado para não ser artista. Meu pai não queria que eu fosse cantor, mas queria que eu fosse compositor. ele queria que eu fosse como o Vanzolini (Paulo Vanzolini, autor de clássicos como Ronda), de quem ele era muito amigo. O Vanzolini era biólogo e compunha diletantemente. Na minha geração era bom ser cantor, já tinha o Chico Buarque, o Caetano, Roberto Carlos. O meu sonho era um sonho da televisão, que meu pai não pegou na mocidade dele, quando só havia o rádio. Eu peguei a chegada da tevê com esses ídolos. Meus maiores ídolos são compositores, mas também são cantores, o próprio Chico e Caetano, Jobim, Vandré, Belchior. Uma coisa que eu buscava era que os intérpretes pegassem músicas minhas, mas elas eram muito introspectivas, muito pessoais. Eu tinha algo não muito comercial, então eu mesmo tive que meter a cara e cantar. Mas sempre fui execercendo o compositor, dei música para o MPB4 (Labirinto, de 1983). Nesse período, Aconteceu Você, com a Fafá (de Belém) também estourou. Ao longo da carreira, fui sendo visitado: Ana Carolina, Vanessa da Mata gravaram músicas minhas, a Céu e Zezé Di Camargo gravaram Planeta Água, os sertanejos gostam da minha música... sou um denominador comum, um coringa na MPB. Isso me alegra muito.


Você citou ter começado já sob a televisão. Hoje, isso mudou com a internet. Como você vê as novas tecnologias na música?


Essa parte da tecnologia, no meu caso, foi muito boa, porque me tirou da unidade de produção daquela época, que era muito vertical: era proibitivo o uso dos estúdios. Aquilo favorecia muito os potentados, os CEOs das gravadoras concentravam o poder.


A tecnologia democratizou a música?


A mim, em particular, sim. Porque eu domino muito bem (esses meandros da gravação). Já dominava na época do analógico, aprendi muito com os produtores e me dei muito bem com eles, porque sabia o que queria, tinha boas canções, ideia do que tirar de som. Os produtores foram me respeitando, deixavam as minhas escolhas. Até os equívocos são meus. Quando essa máquina se desmanchou e girou o digital, não senti descontinuidade: a única coisa é que eu não tenho que prestar satisfação do que gravar. Antes, tinha que vender para a gravadora os projetos, mostrar o repertório. A grande diferença hoje é a parte promocional. Quando você está sob a cobertura de uma grande gravadora, tem uma propulsão a jato. com um projeto de marketing.


Apesar da sua adaptação técnica, como lidar com essas nuances de marketing, tendo em vista as redes sociais, para um artista consagrado como você?


Estou na construção de uma edificação bastante segura e sólida. Sou um caso único nas redes sociais, em termos de conteúdo opinativo, formando uma base na internet, usando a rede social como ferramenta, e publicando como cronista. Estou formando o núcleo de um público que gosta do Guilherme Arantes e em que as reflexões encontram eco. Também estou num período de construção de composições que vão me levar para um novo patamar de relevância, aliás, que eu nunca tive. Tenho certeza, hoje eu sou muito maior do que nos anos 70. Isso o tempo foi construindo pra mim. Fiz uma música para a Gal, Puro Sangue (Libelo do Perdão) (2018). Ano retrasado, para Alaíde Costa, uma cantiga de ninar (Berceuse, 2022). Não dá para comprarar com o que eu produzia com 20 anos.


Você escreveu e cantou grandes canções, que já são clássicos da MPB, com 20 e poucos anos. Não está se subestimando?


Tive, sim, bons momentos bem jovem: com 22 anos, fiz Amanhã. Eu era um cara maduro pra idade, mas a imagem que eu vendi era de um pop mais leve, mais adolescente. Esse era o marketing das gravadoras e o que o jornalismo escolheu pra mim. Até hoje, o jornalismo insiste que eu sou o arquiteto do pop. Já passei essa fase há muito tempo.


Nesse sentido, como você se vê hoje?


Posso dizer que tem um grupo numeroso de jornalistas da nova geração que são meus admiradores de fato, não só das músicas, mas da conduta intelectual. Estou me valendo muito das redes sociais para criar esse ambiente. Olho meus colegas publicando platitudes, do tipo fotos em lugares paradisíacos, fotos do por do sol, fazendo comida: só bobagem. Não estão trabalhando o potencial que as redes proporcionam.


Como você se vê na mídia em geral, não só nas redes sociais?


Nunca tive uma grande adesão dos jornalistas, sempre fui visto com olhos de irrelevância. Sou filho de um médico, dos Jardins, de São Paulo. Preciso lutar e apresentar muito mais resultado. Quando eu cheguei num festival (MPB Shell, em 1981, com Planeta Água, que ficou em segundo lugar), matéria saiu que eu tinha feito o hino da Sabesp, que a minha música era terrivelmente medíocre e o assunto da água era uma bobagem. Foi deslegitimação. O Lyotard (Jean-François, filósofo francês) lançou esse conceito, fui estudar isso e percebi que eu fui deslegitimado (na ideia do filósofo, as narrativas que construíram a sociedade ocidental, em especial o conhecimento científico, sofrem o questionamento na era pós-moderna). Percebi que fui deslegitimado especialmente pela esquerda, porque fui ‘filhinho de papai’, toco piano e tenho uma base aristocrática. O Brasil é um país deslegitimador. O sertanejo é deslegitimado pela MPB, que é deslegitimada pelo funk, e assim sucessivamente: somos uma sociedade excludente.


Em termos musicais, o que você considera representar hoje o Brasil?


Na nova geração, Anavitória, é sensacional. Elas são brasileiras no sentido brejeiro, de trazer boas músicas, com boas letras. Duas figuras adoráveis, bastante fluidas em termos de gênero. Outro, uns meninos que estão sendo lançados pelo Caetano, pela Paula Lavigne, Os Garotin. São três meninos, uma mistura de hip hop com samba, uma linguagem da quebrada, mas com uma excelência de Stevie Wonder. Citei dois exemplos muito bacanas.


A forma de ouvir música mudou. O conceito de álbum, com começo, meio e fim, perdeu a força. Como você se relaciona com isso?


Li também que há uma tendência das músicas diminuírem de tamanho, buscam música de um minuto... pra mim, não cola: eu sou velho, minhas músicas têm, no mínimo, três minutos e meio, e ponto final. Não estou preocupado, estou com 70 anos, nem aí para as tendências desse mundo, dessa pulverização. Não vão deixar de existir Tom Jobim, Baden Powell, Chopin, Bach.


Música é, principalmente, um prazer pessoal?


Na minha relação com a indústria, sempre me perguntavam: ‘você quer vender um milhão de discos?’. Eu dizia: ‘não, eu quero vender 10 discos de 100 mil’. Por que? Pra vender 1 milhão, você tem que fazer alguma coisa artificiosa e, depois, é difícil repetir. Já nos 10 discos de 100 mil você construiu uma carreira. Eu, hoje, quero me tornar um jobiniano da música brasileira, da harmonia, da melodia. Aos 70 anos, só me resta compor músicas inacreditavelmente belas: isso é o que vai me dar prazer.


Você tem uma história pessoal com Santos...


Passei a infância e a mocidade. Meu pai morou em Santos. Há uma ligação afetiva, com a balsa (Santos-Guarujá), a última vez que eu estive com a minha mãe, foi a minha despedida dela, fiz uma homenagem em um show na praia, no final de 2019 (na edição do Ilumina Santos, na varanda do Atlântico Hotel), coloquei minha mãe no palco, cantei pra ela, que morreu logo depois. Tem o Aquário, a Ponta da Praia... é deliciosa a Cidade: um estado de espírito.


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