Dez anos sem o escritor Gabriel García Márquez

Colombiano é um dos maiores nomes da literatura do século 20 e grande decifrador da alma latino-americana

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  17/04/24  -  13:49
Gabriel García Márquez morreu em 17 de abril de 2014
Gabriel García Márquez morreu em 17 de abril de 2014   Foto: Reprodução

Muitos anos depois, diante de uma tela de computador em branco, este então jovem repórter lembraria do dia em que, pela primeira vez, leu a frase de abertura de um dos maiores romances do século 20, Cem Anos de Solidão. A tela foi preenchida, a matéria sairia de qualquer forma, mas a evocação de Gabriel García Márquez, que também foi jornalista, é emblemática: o seu maior romance, citado acima, de 1967, e que lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1982, consolidou o Realismo Fantástico, além de desvelar a alma da América Latina sob uma lupa jornalística, mas com a profundidade que só a ficção pode proporcionar.


“O Jornalismo é uma arma muito mais rápida que a Literatura. (...) Os tempos é que são diferentes: o Jornalismo é uma arma de emergência, para batalhas a curto prazo, enquanto a Literatura é uma arma mais lenta, embora muito eficaz”, disse o escritor em entrevista a Eric Nepomuceno, publicada na revista Veja, em 1980.


Quando García Márquez escreveu sua obra-prima, entre 1965 e 1967, a América Latina vivia – mais um – período de turbulência, com ditaduras militares se instalando no bojo da Guerra Fria, que opunha Estados Unidos e a então União Soviética. Cem Anos de Solidão surgiria como a síntese da identidade do continente que seguia vítima dos jogos de poder colonizadores. Na saga de 100 anos da família Buendía, na fictícia Macondo, havia de tudo: caudilhismo, o colonialismo industrial, machismo, rebeliões, pragas tropicais e a violência política. Ou seja, todas as grandes questões que fizeram – e fazem, com seu peso histórico – a América Latina solapar a si mesma.


“Eu acho que meus livros têm impacto político na América Latina porque eles ajudam a criar uma identidade latinoamericana, eles ajudam os latinoamericanos a terem uma consciência maior de sua cultura”, disse o próprio Gabo, como era conhecido, em uma entrevista ao jornal The New York Times, em 1988.


No caso de Cem Anos de Solidão, o alcance vai além. “É o livro que redefiniu não apenas a literatura latinoamericana, mas também a literatura. Ponto”, afirmou o escritor e pesquisador da cultura latina, Ilan Stavans, em entrevista ao site BBC News Brasil, em novembro de 2018.


Vida inspira obra
Se toda grande obra tem várias formas de ser lida, também é certo que não passa incólume à vida de seu criador. Com Gabo não foi diferente: nascido em Aracataca, no norte da Colômbia, em 6 de março de 1927, teve cidade natal como inspiração para a sua fictícia Macondo. Segundo Gerald Martin, autor da biografia Gabriel García Márquez – Uma Vida (Ediouro Publicações, 2019), Aracataca viveu o apogeu no começo do século 20, pela presença da United Fruit Company, empresa norte-americana de cultivo e exportação de frutas tropicais, especialmente banana. O crescimento atabalhoado, resultado de um extrativismo sem compromisso com as sociedades locais, sempre pairou nas obras de Gabo.


A relação conturbada com o pai, um telegrafista que teve 11 filhos legítimos e quatro ilegítimos e que fora obrigado a fugir de várias cidades por causa de problemas com mulheres, o fez morar com os avós durante toda a infância. A convivência com o avô, bom contador de histórias, e com a sabedoria prática da avó, iria instalar nele o gérmen do realismo mágico e se transferir a personagens como o Aureliano Buendía e a Úrsula, de Cem Anos.


“A irrealidade da América Latina é uma coisa tão real e cotidiana que está totalmente mesclada com o que se entende por realidade”, afirma Gabo no livro Duas Solidões, que apresenta a transcrição de um bate-papo entre o autor e o também escritor, o peruano Mario Vargas Llosa, na Universidade de Lima (Peru), em 1967.


Fonte
Em termos literários, a fonte dessa irrealidade é uma só: A Metamorfose, de Kafta. Um jovem Gabo ficou impressionado com a transformação de Gregor Samsa em um inseto gigantesco já na primeira frase do livro. Daí vem, por exemplo, as borboletas amarelas que sempre precediam as aparições do personagem Maurício Babilônia; ou a sina de Remédios, que de tão bela, ascendeu ao céu em corpo e alma – ambos personagens de Cem Anos de Solidão.


“O Nobel é um prêmio que se dá a uma obra, no momento em que se dá: não quer dizer que a obra está terminada”, disse Gabo certa vez. Está coberto de razão: mesmo após sua morte, e ao contrário do que aconteceu aos Buendía, cuja estirpe não teria uma segunda oportunidade sobre a terra, a obra de García Márquez continuará ecoando pelos séculos afora.


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