Canal 9: "A gente precisa ter mulheres em todos os níveis de produção dos quadrinhos"

O mercado de quadrinhos, tanto para profissionais como para as fãs, está cada vez mais feminino. Mas longe de ser um ambiente marcado pela igualdade entre homens e mulheres, avalia Dani Marino, considerada uma das principais pesquisadoras de comics no Brasil

Por: Leopoldo Figueiredo & Marcelo Padron &  -  08/03/20  -  20:09
Atualizado em 08/03/20 - 20:11
No Dia Internacional da Luta pelos Direitos das Mulheres (8), Dani Marino é o destaque do 'Canal 9'
No Dia Internacional da Luta pelos Direitos das Mulheres (8), Dani Marino é o destaque do 'Canal 9'   Foto: ( Alexsander Ferraz)

O mercado de quadrinhos, tanto para profissionais como para as fãs, está cada vez mais feminino. Mas longe de ser um ambiente marcado pela igualdade entre homens e mulheres. E isso vai desde o tratamento dispensado a ilustradoras e roteiristas, como às leitoras, que ainda se deparam com barreiras no mundo nerd. Aliás, a diferenciação chega até as personagens, que, em muitas histórias, são utilizadas apenas como a namoradinha que precisa ser salva ou a vítima.


A avaliação é da santista Dani Marino, considerada uma das principais pesquisadoras de comics no Brasil e especialista naquela que é o ícone da super-heroína, a Mulher Maravilha. Formada em Letras, ela integra o Observatório de Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), e a Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (Aspas), além de ser uma das autoras do site Minas Nerds. E neste Dia Internacional da Luta pelos Direitos das Mulheres (8), Dani Marino é o destaque da coluna Canal 9, no Jornal A Tribuna.


Historicamente, os quadrinhos eram voltados para o público masculino. Mas e hoje? Esse cenário continua? Ou esse público tem tanto homens como mulheres?


Essas medições de leitores são feitas com base em alguns gêneros, por exemplo no gênero de super-heróis. Nesse gênero, nós ainda temos majoritariamente um público leitor masculino. Mas isso vai variar de país para país. No Japão, por exemplo, você tem vários tipos de quadrinhos, que são os mangás, e eles são divididos demograficamente, por gênero, faixa etária. Então você tem um público feminino maior em outros gêneros. Mas os quadrinhos ainda são um meio bastante masculino. 


Tradicionalmente, nas histórias em quadrinhos, as mulheres tinham um papel secundário. Eram a mocinha que precisava ser salva pelo herói, ou mesmo a vítima que é assassinada, o que leva o herói em sua jornada de vingança. Mas hoje várias editoras apostam em títulos com protagonistas femininas. O mercado de quadrinhos realmente mudou?


Em alguns casos, sim. Mas ainda não é na maioria das produções. Ainda existe uma recorrência nesses recursos narrativos que a gente chama de clichês, em que a mulher é morta, violentada, para justificar o protagonismo masculino. Mas com o aumento das roteiristas e outras mulheres na indústria e, principalmente, de editoras – a gente precisa ter mulheres em todos os níveis e todos os campos de produção dos quadrinhos - nós temos uma mudança, sim. Você tem mudanças sociais e culturais, e os quadrinhos, como qualquer produção humana, vão refletir esse contexto. Você tem, por exemplo, uma produção que se destaca, como, por exemplo, os X-Men (Marvel Comics), que traz uma mensagem mais progressista e a sociedade vai refletir sobre isso.

E do lado dos fãs, mesmo com o avanço da cultura nerd, as leitoras sofrem mais preconceito do que os leitores? 


Sim. Tanto que o (site) Minas Nerds existe por conta disso. É um grupo fechado que surgiu para discutir nerdices em geral. De maneira geral, em grupos mistos, elas não tinham vontade de se manifestar pois, toda vez que elas se manifestavam, eram diminuídas. E isso é uma ideia recorrente. Uma mulher que entra em uma loja de quadrinhos com o namorado, ela não vai ser atendida. Se ela sai com a camiseta de um personagem, ela vai ser questionada. E eles (os fãs) mesmos fazem isso. Os próprios homens que se sentiam tanto marginalizados, até os anos 80, eles mesmos promovem essa diferenciação. Eles não querem dividir o brinquedinho deles.

Na indústria dos quadrinhos, como está a participação da mulher? Está melhor, mais reconhecida?


No início da produção dos quadrinhos nos Estados Unidos, elas ocupavam bastante espaço, pois elas faziam parte de todo o sistema de produção. Principalmente quando os homens tiveram de ir para guerra, elas passaram a ocupar postos como desenhistas, ilustradoras. Mas aí teve o retrocesso e depois isso foi voltando aos poucos. Hoje, grande parte dessas ilustradoras trabalha em agências de publicidade ou estúdios de animação. Nós temos aqui a santista Camila Queiroz, que faz parte de um estúdio de animação em Santos. E ela está na produção do Turma da Mônica Jovem, do Cartoon Network. Então elas acabam trabalhando em diversas áreas ligadas à produção artística, e não necessariamente nos quadrinhos.

No ano passado, você e a historiadora e também pesquisadora Laluna Machado lançaram o livro Mulheres e Quadrinhos, mostrando a participação feminina nessa indústria, no Brasil. Como foi esse trabalho? Foi difícil localizar essas profissionais?


Difícil foi o processo em si e, na verdade, ter de parar de chamar as mulheres em um determinado ponto. A ideia que existia quando fomos chamadas para fazer o livro é que existiria umas 40 mulheres. E o livro traz mais de 120 mulheres envolvidas com a produção de quadrinhos. Ele ficou com 500 páginas, bem grande. Em um dado momento, a gente chegou para os editores e dissemos: “olha, a gente está com 135 mulheres na nossa lista. A gente continua chamando?”. E eles disseram não. Eles não imaginavam que a gente fosse chegar nesse número. E esse número não representa nem um quinto de quadrinistas que existem no Brasil. Muitas delas têm um receio de se definirem como quadrinistas.

Por quê?


Por que a gente tem uma mentalidade de que quadrinhos é só super-herois. Então quando elas fazem algo mais autobiográfico, pessoal, muitos dos colegas falam que não é quadrinhos. 

Hoje, quem são as grandes profissionais brasileiras do mercado?


Adriana Melo, que, inclusive, ontem (terça-feira passada), postou uma arte lindíssima de uma comission dela com a Arlequina com a Hera Venenosa; a Bilquis Evely, inclusive as duas estão trabalhando para a DC; Bianca Pinheiro; Cris Peter, que já ganhou o Eisner de melhor colorista; Fabi Marques. São muitas mesmos.

E entre as que estão começando, quem você destaca?


Tem a Jéssica Groke, que está se destacando bastante, a Cecília Marins, que fez uma HQ chamada Parque da Luz, onde ela entrevistou prostitutas do Parque da Luz, em São Paulo. Tem ainda uma obra que eu indico, da Caru Moutsopoulos e da Caroline Favret, elas acabaram de lançar, a Cabana. O primeiro trabalho que elas fizeram foi para o Mulheres e Quadrinhos. E quando você pega essa obra, você não diz que é de alguém que está iniciando. Quem gosta mesmo de quadrinhos vai reconhecer aqui recursos narrativos típicos de quem já conhece muito de quadrinhos, tanto de enquadramento como de narrativa. E há a Laura Ataíde, Aline Lemos. Elas não estão começando, mas começam a se destacar.

Como especialista em Mulher Maravilha, qual a fase de que você mais gosta da personagem? E como você analisa o tratamento dado a personagem atualmente pela DC Comics?


A fase de que mais gosto é Novos 52, do Brian Azarello. Depois vem a fase do (George) Pérez. Eu acho que Novos 52 é muito mais interessante porque tem uma ligação muito forte com as histórias do Sandman, por causa dos deuses gregos. A DC, agora, está dando um destaque maior para ela, colocando como a primeira heroína da editora, muito por conta do filme, que tem um apelo muito grande entre públicos de todas as idades. Ela, realmente, é uma personagem muito icônica. Mas nas histórias seriadas, esse tratamento não é uma constante.


Ela tem altos e baixos, tem histórias muito boas e umas terríveis. Nossa, nos anos 90, não tem nada que se salve dela. Aquele traço, que era do Rob (Liefield), que era emulado por todos os artistas, que pareciam que as personagens tinham dois metros de altura, a coluna quebrada - essa técnica da coluna quebrada acabou virando uma técnica de desenho. Muitos desenhistas aprenderam a desenhar com esse tipo de traço, onde as mulheres são retratadas com bunda e peito no mesmo plano, morrem em posições impossíveis, hipersexualizadas, uma violência desmedida.

Que orientação você dá para as jovens e mulheres que pretendem entrar no mercado de quadrinhos?


Primeiro, é se profissionalizar, procurar uma boa escola de desenho, de roteiro, A gente tem algumas em Santos. Em São Paulo, tem a Quanta Academia de Artes. E, principalmente, fortalecer a autoestima a ponto de não dar ouvidos a certas críticas. A mulher é cobrada nesse meio muito mais do que os homens. Se um homem tem um traço mais cartunesco, como do Laerte e do Glauco, todo muito está ok com isso. Quando uma mulher faz esse tipo de desenho, ela é acusada de desenhar mal. Então não dê ouvido a esse tipo de crítica e procure levar seu portfólio nos eventos, pois os eventos de quadrinhos são os lugares onde você tem acesso direto a essas artistas e pode conversar diretamente com elas, que são super acessíveis. Participe.


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