Resgatar a sua criança interior é essencial para conseguir levar uma vida mais plena e feliz

Essência que revigora: Especialistas ensinam formas de como fazer isso

Por: Alcione Herzog  -  19/09/21  -  08:40
 “Nossa forma de pensar é influenciada pelo conteúdo de nossa criança interior”, afirma a psicóloga Kátia Rosa
“Nossa forma de pensar é influenciada pelo conteúdo de nossa criança interior”, afirma a psicóloga Kátia Rosa   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Esta reportagem começa com um pedido, como o de uma criança animada para tomar picolé antes do almoço. Pois bem: antes de iniciar a leitura, pegue o celular, coloque um fone de ouvido e procure em sua plataforma preferida a música de Milton Nascimento Bola de Meia, Bola de Gude. Ele diz: “Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão. Há um passado no meu presente. Um sol bem quente lá no meu quintal. Toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão”.


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Depois de viajar na melodia e ouvir com atenção a letra, segure na mão do menino (ou menina) que foi um dia. Essa criança pode estar um pouco escondida, amuada, mas te espera em algum canto do coração, pronta para sorrir e brincar.


Essa não é uma conversa de quem perdeu o juízo. Pelo contrário. Segundo cientistas e psicólogos, resgatar a criança interior é uma das coisas mais importantes que um adulto pode fazer para viver de maneira mais plena.


O que acontece é que ao longo do desenvolvimento, diante de tantas cobranças e responsabilidades, vamos nos desconectando das melhores características do nosso “eu infantil”. E então, os anos passam e cada vez mais o mundo parece cinza e a vida, sem graça. Só que não precisa ser assim.


Antes de buscar alternativas, é fundamental entender o que vem a ser de fato a criança interior. A psicóloga Kátia Rosa explica que o termo é usado na Psicologia para se referir à parte do nosso inconsciente onde ficam guardadas as nossas lembranças, aspirações, experiências, medos e desejos da infância. A melhor forma de lidar com a nossa criança dependerá do que está nesse campo da mente. Há duas situações mais comuns:


“A primeira é quando a criança sofreu traumas, ansiedades e sofrimentos. Nesse caso, ao longo da vida adulta, sempre que essa pessoa precisar utilizar aspectos ligados à criatividade, alegria, ao lado criança mesmo, aquele conteúdo negativo virá junto. Quando esse indivíduo realiza, cria, produz acaba experimentando também uma certa ansiedade, insegurança e até medo. Emerge também a criança interior que se abalou por algum motivo”


Essa sensação é algo que muitos de nós experimentamos até com certa frequência. Kátia usa como exemplo alguém que planeja comprar um carro novo e, quando consegue, fica contente, mas junto com a alegria também se preocupa por não saber se conseguirá arcar com os custos da gasolina etc.


“Para cada alegria, uma ansiedade. Para cada prazer, um sentimento de culpa. Assim sentem-se os adultos com crianças interiores feridas”. Nesse caso, o sinal é claro: deve-se resgatar o “eu infantil”, mas para acolhê-lo e tratar o que não ficou bem resolvido no passado.


Postura oposta.

No segundo tipo de situação comum, ocorre justamente o contrário. Temos um ser humano que quando criança foi muito bem cuidado e amado. Ele teve uma infância com bastante harmonia e dignidade. “Pessoas que tiveram essa primeira etapa de vida mais positiva, ao precisarem evocar seu lado criança, é como se junto viesse um jato de luz. Elas fazem as coisas com força, tonicidade e mais confiança”, afirma Kátia.


Levando em conta o exemplo anterior, a psicóloga cita a pessoa que compra o carro, sabe que terá de fazer alguns sacrifícios para mantê-lo, mas foca apenas no quanto ele será útil no dia a dia e nos momentos de lazer. “Em resumo: nossa forma de pensar é influenciada pelo conteúdo de nossa criança interior”.


Visão distorcida.

Para a psicóloga Larissa Costa, um dos principais reflexos de negligenciarmos o lado criança é não nos conhecermos por completo e termos uma visão distorcida de quem somos. “Corremos o risco de nos tornarmos engessados. Acreditamos que não podemos nos divertir. Aliás, muitos esquecem do que gostam. No consultório, é bem comum o paciente, ao ser perguntado sobre o que ama fazer, dizer que não sabe. É preciso todo um trabalho para resgatar essa essência”.


E sem sabermos, esse distanciamento ou silenciamento da nossa versão criança pode impactar até nos resultados daquilo que normalmente valorizamos muito no presente, como a qualidade dos relacionamentos e a evolução na profissão.


“Alguns sintomas práticos de quem não acolhe e não cuida de sua criança interior podem ser baixa autoestima no trabalho, dificuldade para lidar com críticas, medo do abandono, autocobrança exagerada”, elenca Larissa.


Por outro lado, ignorar os aspectos positivos é puro desperdício de potencialidades adormecidas. Maria Cristina Dalia, psicanalista, lembra que a criança interior é quem traz a possibilidade da alegria, da brincadeira, da fantasia e a capacidade de lidar com as adversidades e vicissitudes da vida.


“Os pequenos conseguem brincar e fantasiar em qualquer situação. Vi um documentário sobre um país na África muito pobre em que crianças brincavam com ossos humanos”.


É impossível não lembrar que no Brasil a cena não chega a ser uma novidade. Os mais velhos devem lembrar da aclamada série de reportagens chamada Viúvas da Seca. Em uma das matérias, apresentada em 1983, o repórter chora ao mostrar o cotidiano de uma criança que brinca com pedaços de ossos dos animais que morreram por falta de pasto e de água – cada um representava certo animal da fazendinha imaginária, com direito a bois, touros, bezerros e galinhas de mentirinha.


Na ficção, há o longa-metragem A Vida é Bela, vencedor do Oscar de melhor filme. A produção mostra um pai judeu que se utiliza de todos os recursos de sua criança interior para suavizar a vivência do filho pequeno diante do horror de um campo de concentração na Alemanha nazista. Na história, os dias dentro daquele universo macabro viraram uma grande brincadeira para o pequeno prisioneiro, que certamente teria muito mais facilidade para superar os resquícios daquilo.


Criança ferida.

Os exemplos ajudam a entender que na Psicologia existe uma diferença entre a “criança interior” e a “criança ferida”. A criança ferida tem a ver com a nossa história, com as vivências e situações que nos criaram tristeza ou sofrimento e que podem gerar bloqueios na forma de nos relacionarmos ou refletir em algum aspecto da vida em que não conseguimos evoluir.


Dando a mão para a criança interior, aquela que é vibrante, espontânea e desbravadora, começamos a nos recuperar, com a possibilidade de ver a vida de um jeito diferente. É quando a magia começa e nos recriamos a partir da perspectiva da criança que olha no olho e enxerga além das barreiras do preconceito. Nós a convocamos para ajudar com a nossa criança ferida.


Como fazer esse mergulho? Para Larissa Costa, o ideal é buscar ajuda profissional para mediar esse momento necessário. “Mas é preciso realmente querer. Há pessoas que chegam no processo terapêutico com mais facilidade de enxergar como é importante a gente ver o mundo com olhos de criança, que só quer brincar e não tem tanta ‘responsa’, como diz uma música do Chorão. Outras têm mais resistência”.


Com suporte.

Kátia Rosa reforça que a busca por apoio, seja por meio de terapia ou outros processos, é importante não só para o adulto que apresenta a criança triste, infeliz ou angustiada. “Traumas, crenças, dúvidas ou rancores enraizados nos primeiros anos de vida requerem atenção. É preciso, sim, resgatar, para acolher e cuidar da criança ferida. No entanto, mesmo quando a situação é inversa, pode ser necessário um olhar profissional. Há pessoas que têm uma criança interior muito bacana, mas não a usam adequadamente. É preciso trazê-la para o presente, buscando brincar mais, se divertir mais, usar da melhor maneira todos os atributos que ela proporciona”.


Na Psicanálise, o movimento é de mediar o entendimento de quem se acomoda no divã sobre como o passado influencia o presente. Segundo a psicanalista Maria Cristina Dalia, o que é atual em nossas vidas tem a ver com o que foi vivido na infância. A grande questão é a maneira como lidamos com os eventos e com as situações. “Tudo no fundo é uma repetição, reedição do que foi bom ou ruim. Nós podemos abrir o que estava fechado, revisitar o que nos marcou e nos depararmos com novas versões para, então, ressignificar, reconstruir, reelaborar essa história. Esvaziamos raivas e outros sentimentos, pois eles perdem todo o sentido. Ficamos só com o que nos ajuda a ser mais leves”.


Família mais do que unida no circo.

Leveza, improviso e alegria são matéria-prima no trabalho da família de palhaços Belina, Chevette e Cotoco. O casal Audrey e Sidney Herzog, junto com o filho Bernardo Herzog, levam o universo circense para comunidades carentes e escolas de Santos há dez anos.


 “Nós podemos revisitar o que nos marcou e ressignificar, reelaborar essa história”, acredita a psicanalista Maria Cristina Dalia
“Nós podemos revisitar o que nos marcou e ressignificar, reelaborar essa história”, acredita a psicanalista Maria Cristina Dalia   Foto: Alexsander Ferraz/AT

Recentemente, eles passaram a se apresentar e a dar oficinas de circo como Família Herzog nas praças e casas de espetáculos da região. Mas nem sempre foi assim. No início do relacionamento, apenas Sidney era palhaço e professor de circo. Com filho pequeno e os boletos chegando, Audrey ficava com a parte “adulta” da dinâmica familiar, ao mesmo tempo em que incentivava a arte do companheiro. “Alguém na família precisava acreditar no sonho. Ele quis desistir, mas não deixei que largasse a vida de palhaço”, lembra.


Audrey trabalhou no setor financeiro e ocupou cargos de destaque em grandes corporações e cooperativas de crédito. Fez MBA na área e até cursou faculdade de Direito, atendendo aos pedidos do pai. “Eu estava evoluindo como profissional, porém meu sonho de criança era ser atriz. Eu estava adoecendo com as cobranças do mundo corporativo e, quando as coisas se estabilizaram, foi o Sidney quem me pediu para resgatar minha palhaça”, conta, feliz por estar no segundo ano da Escola de Artes Cênicas de Santos e prestes a tirar seu registro profissional para o exercício da profissão.


Para Sidney, o lúdico sempre esteve presente, desde os tempos de “pivete criado nas ruas da região do Mercado de Santos”. “Pessoas ao meu redor foram muito importantes para que eu não deixasse de seguir minha criança interior”, reconhece.


O primeiro emprego, aos 12 anos, foi como entregador de água. Aos 14, ele descobriu que era possível ganhar uns trocados fazendo animação como palhaço em festas infantis. “Comprei um jornal Primeira Mão e busquei os anúncios que procuravam pessoas para trabalhos do tipo. Nasceu assim o Palhaço Abobrinha”.


Aos 16, Sidney percebeu que, se quisesse viver de arte, teria que investir em formação. Entrou para a escola de teatro da Prefeitura de Santos e naquele universo foi estimulado a fazer vários outros cursos. Aos 19, ao participar da primeira aula de circo, teve a certeza de que era o que queria fazer para o resto da vida. “Descobri que é possível, através do riso, falar de tudo e até mesmo denunciar injustiças ou contribuir para os processos de consciência social”.


Para o palhaço, um dos momentos mais significativos foi a estreia improvisada do filho em um espetáculo. Imagine a cena em plena Concha Acústica, na orla de Santos: a arquibancada estava lotada e, com tudo pronto para começar a apresentação recheada de números de malabarismo e trapalhadas, o som foi cortado por força da recém-aprovada lei municipal que limitava os decibéis em eventos culturais com equipamentos sonoros na praia.


Era a Guarda Municipal que cumpria a legislação, impedindo assim o início da performance e frustrando os presentes. Seria preciso adaptar algumas brincadeiras e encher de ar os pulmões, afinal o show nunca pode parar. Enquanto a equipe discutia com os guardas como poderia seguir com a apresentação, Bernardo, do alto de seus 4 anos de idade, tomou a iniciativa de passar o chapéu na plateia.


O que se viu depois foi a maior arrecadação do grupo. O pai, então, teve de apresentar o novo integrante da trupe, inventando na hora o nome do palhaço mascote. Cotoco caiu nas graças do público. Ao final da arrecadação, ao mostrar o fundo do chapéu, ainda perguntou: “Quer mais papai?” Ao som de gargalhadas e aplausos, o show seguiu, com uma solução para um momento de crise que poucos adultos pensariam.


“Sem dúvida, todos os dias ele me conecta com a minha criança interior”, finaliza Sidney, orgulhoso.


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