Esta reportagem começa com um pedido, como o de uma criança animada para tomar picolé antes do almoço. Pois bem: antes de iniciar a leitura, pegue o celular, coloque um fone de ouvido e procure em sua plataforma preferida a música de Milton Nascimento
Depois de viajar na melodia e ouvir com atenção a letra, segure na mão do menino (ou menina) que foi um dia. Essa criança pode estar um pouco escondida, amuada, mas te espera em algum canto do coração, pronta para sorrir e brincar.
Essa não é uma conversa de quem perdeu o juízo. Pelo contrário. Segundo cientistas e psicólogos, resgatar a criança interior é uma das coisas mais importantes que um adulto pode fazer para viver de maneira mais plena.
O que acontece é que ao longo do desenvolvimento, diante de tantas cobranças e responsabilidades, vamos nos desconectando das melhores características do nosso “eu infantil”. E então, os anos passam e cada vez mais o mundo parece cinza e a vida, sem graça.
Antes de buscar alternativas, é fundamental entender o que vem a ser de fato a criança interior. A psicóloga Kátia Rosa explica que o termo é usado na Psicologia para se referir à parte do nosso inconsciente onde ficam guardadas as nossas lembranças, aspirações, experiências, medos e desejos da infância. A melhor forma de lidar com a nossa criança dependerá do que está nesse campo da mente. Há duas situações mais comuns:
“A primeira é quando a criança sofreu traumas, ansiedades e sofrimentos. Nesse caso, ao longo da vida adulta, sempre que essa pessoa precisar utilizar aspectos ligados à criatividade, alegria, ao lado criança mesmo, aquele conteúdo negativo virá junto. Quando esse indivíduo realiza, cria, produz acaba experimentando também uma certa ansiedade, insegurança e até medo. Emerge também a criança interior que se abalou por algum motivo”
Essa sensação é algo que muitos de nós experimentamos até com certa frequência. Kátia usa como exemplo alguém que planeja comprar um carro novo e, quando consegue, fica contente, mas junto com a alegria também se preocupa por não saber se conseguirá arcar com os custos da gasolina etc.
“Para cada alegria, uma ansiedade. Para cada prazer, um sentimento de culpa. Assim sentem-se os adultos com crianças interiores feridas”. Nesse caso, o sinal é claro: deve-se resgatar o “eu infantil”, mas para acolhê-lo e tratar o que não ficou bem resolvido no passado.
Postura oposta.
No segundo
Levando em conta o exemplo anterior, a psicóloga cita a pessoa que compra o carro, sabe que terá de fazer alguns sacrifícios para mantê-lo, mas foca apenas no quanto ele será útil no dia a dia
Para a psicóloga Larissa Costa, um dos principais reflexos de negligenciarmos o lado criança é não nos conhecermos
E sem sabermos, esse distanciamento ou silenciamento
“Alguns sintomas práticos de quem não acolhe e não cuida
Por outro lado, ignorar os aspectos positivos é puro desperdício de potencialidades adormecidas. Maria Cristina Dalia, psicanalista, lembra que a
“Os pequenos conseguem
É impossível não lembrar que no Brasil a cena não chega a ser uma novidade. Os mais velhos devem lembrar da aclamada série de reportagens chamada
Na ficção, há o longa-metragem
Os exemplos ajudam a entender que na Psicologia existe uma diferença entre a “criança interior” e a “criança ferida”. A criança ferida tem a ver com a nossa história,
Dando a mão para a criança interior, aquela que é vibrante, espontânea e desbravadora, começamos a nos recuperar,
Como fazer esse mergulho?
Kátia Rosa reforça que a busca por apoio, seja por meio de terapia ou outros processos,
Na Psicanálise, o movimento é de mediar o entendimento de quem se acomoda no divã sobre como o passado influencia o presente. Segundo a psicanalista Maria Cristina Dalia, o que é atual em nossas vidas tem a ver com o que foi vivido na infância. A grande questão é a maneira como lidamos com os eventos e com as situações. “Tudo no fundo é uma repetição, reedição do que foi bom ou ruim. Nós podemos abrir o que estava fechado, revisitar o que nos marcou e nos depararmos com novas versões para, então, ressignificar, reconstruir, reelaborar essa história. Esvaziamos raivas e outros sentimentos, pois eles perdem todo o sentido. Ficamos só com o que nos ajuda a ser mais leves”.
Leveza, improviso e alegria são matéria-prima no trabalho da família de palhaços Belina, Chevette e Cotoco. O casal Audrey e Sidney Herzog, junto com o filho Bernardo Herzog, levam o universo circense para comunidades carentes e escolas de Santos há dez anos.
Recentemente, eles passaram
Audrey trabalhou no setor financeiro e ocupou cargos de destaque em grandes corporações
Para Sidney, o lúdico sempre esteve presente, desde os tempos de “pivete criado nas ruas da região do Mercado de Santos”. “Pessoas ao meu redor foram muito importantes para que eu não deixasse de seguir minha criança interior”, reconhece.
O primeiro emprego, aos 12 anos, foi como entregador de água.
Aos 16, Sidney percebeu que, se quisesse viver de arte, teria que investir em formação. Entrou para a escola de teatro da Prefeitura de Santos e naquele universo foi estimulado a fazer vários outros cursos. Aos 19, ao participar da primeira aula de circo, teve a certeza de que era o que queria fazer para o resto da vida. “Descobri que é possível, através do riso, falar de tudo e até mesmo denunciar injustiças ou contribuir para os processos de consciência social”.
Para o palhaço, um dos momentos mais significativos foi
Era a Guarda Municipal que cumpria a legislação, impedindo assim
O que se viu depois foi a maior arrecadação do grupo. O pai, então, teve de apresentar o novo integrante da trupe, inventando na hora o nome do palhaço mascote. Cotoco caiu nas graças do público. Ao final da arrecadação, ao mostrar o fundo do chapéu, ainda perguntou: “Quer mais papai?” Ao som de gargalhadas e aplausos, o show seguiu, com uma solução para um momento de crise que poucos adultos pensariam.
“Sem dúvida, todos os dias ele me conecta com a minha criança interior”, finaliza Sidney, orgulhoso.