Ator Bernardo de Assis encara o desafio de fazer um personagem transexual no horário nobre

Ele conta como foi seu processo de transição e diz que ainda é alvo de preconceito e ameaças

Por: Stevens Standke  -  11/04/21  -  17:42

Com a volta de Salve-se Quem Puder à telinha da TV Tribuna/ Globo, terá sequência um debate proposto pelo autor da novela, Daniel Ortiz: sobre a necessidade de naturalizar os personagens e as temáticas transexuais. Tudo isso será desencadeado com o avanço da história do office boy Catatau.


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Escolhido para esse papel, o ator trans Bernardo de Assis conta, a seguir, como foi o impacto da pandemia e do isolamento social nas gravações e no que estava programado para a trama das 19 horas. O carioca, de 26 anos, também dá um relato impactante sobre como foi a descoberta da sua transexualidade, detalha a resistência que sofre principalmente no meio teatral e afirma que, mesmo com a fama, continua sendo alvo, inclusive, de ameaças.


NOVELA Com a pandemia, as gravações de Salve-se Quem Puder foram interrompidas por alguns meses. Isso afetou de alguma forma os rumos do seu personagem, o Catatau, dentro da história?


A novela estreou em janeiro e, em março, quando a pandemia e o isolamento social tiveram início, as gravações foram pausadas. Justo nessa hora, as tramas de alguns personagens, entre eles o Catatau, estavam começando a ser desenvolvidas. Eu já tinha gravado, inclusive, algumas cenas envolvendo a questão de o Catatau ser transexual ou não, mas esse material acabou sendo descartado, pois houve um consenso de que seria melhor segurar essa questão para ela ser devidamente trabalhada na volta da novela. Agradeço muito ao Daniel Ortiz (autor) por não ter modificado em nada a narrativa do Catatau. Sinto que o personagem ganhou muito mais força e espaço quando as gravações foram retomadas em agosto. Terminamos de rodar a novela em dezembro e, mesmo que Salve-se Quem Puder tenha ficado com menos capítulos do que estava previsto, o Catatau continuou do jeito como foi criado, antes da pandemia.


Como tem sido a resposta do público?


Por mais que já estivesse meio subentendido que o Catatau é trans, a gente não tem ideia de como as pessoas vão reagir quando isso for abordado para valer na novela. Um pouco antes da pausa na exibição de Salve-se Quem Puder, quando o Rafael (Bruno Ferrari) corrigiu a Renatinha (Juliana Alves) sobre falar o Catatau ou a Catatau, comecei a receber mensagens nas redes sociais, com perguntas sobre a possível transexualidade do personagem. O próprio público demonstrou que estava entendendo que não apenas o Bernardo de Assis é trans, mas também o Catatau. Agora, a novela está sendo exibida desde o início; nós gravamos várias possibilidades de cenas para quando o material inédito for entrar no ar. O Daniel Ortiz e toda a equipe de roteiristas sempre procuraram ter o maior cuidado para escrever um personagem que não fugisse da realidade. Além de pesquisarem bastante e lerem a respeito, eles conversaram comigo sobre o que é ser trans.


Eles se preocuparam principalmente com qual aspecto?


A ideia da equipe é tentar ajudar a naturalizar os personagens trans. Acho que o grande acerto foi justamente fazer com que a transexualidade do Catatau fosse apenas uma das suas características e não o seu elemento principal. Isso acaba sendo um diferencial, porque, nas obras de dramaturgia, geralmente esse tipo de personagem é construído em cima da tristeza e da violência que os transexuais sofrem. E é supercompreensível que a maioria dos autores queira abordar isso. Afinal, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em segundo lugar, vem o México, onde os índices de mortes de transexuais correspondem a praticamente metade dos óbitos que registramos por aqui. Ou seja, a gente vive no pior país para alguém ser trans. Reforço: é importantíssimo esse debate ser recorrente nas obras de ficção, mas os autores também deveriam tentar retratar outras questões. Nas histórias, o personagem trans normalmente é estuprado, violentado ou assassinado. É difícil sair disso. Enquanto trans, eu gostaria de assistir, por exemplo, a um filme em que esse tipo de personagem não fosse alguém que necessariamente trabalha com sexo ou que morre no final. Acredito que, quando começarmos a escrever novos enredos, isso vai ajudar a sociedade a repensar os seus conceitos.


HOSTILIDADE A fama tem diminuído o preconceito que você enfrenta no dia a dia?


Tenho recebido mais carinho do que o normal, só que a hostilidade, o ódio continuam se fazendo presentes. Não importa se o trans é famoso ou de determinada classe social, ele ouve, lê e vivencia coisas absurdas no dia a dia. Estou acostumado a me deparar com comentários como “por mais que você tente, nunca vai ser homem”. Tem gente que acha que está me elogiando e não percebe que está reproduzindo algum tipo de preconceito. Por exemplo, ao dizer: “Você nem parece que é trans”. Também há perguntas que são inconvenientes, como “você já fez alguma cirurgia?” Essas dúvidas, no fundo, machucam. Sem falar que recebo algumas ameaças. Entre elas: “se eu te encontrar na rua, vou te mostrar o que é ser homem” e “cuidado quando andar sozinho, porque, na verdade, você é uma mulher”. Recentemente, depois de uma entrevista que dei, chegaram mensagens como “se Deus não te matar, eu vou te matar” e “o que você faz é muito errado, você nunca vai ser feliz”. Tirei diversos prints e pensei em levar isso adiante, mas resolvi não processar as pessoas.


TRANSIÇÃO Com que idade teve certeza de que era trans?


Lembro que, ainda durante a infância, algumas coisas não me deixavam feliz, como ter de usar vestido e saia. Mais para frente, ao entrar na puberdade, também fiquei incomodado com certas características que começaram a aparecer no meu corpo. Naquela época, eu não entendia o que estava acontecendo, e não havia nenhuma referência trans. Eu acabava guardando as minhas angústias e infelicidades, pois não tinha ninguém com quem poderia compartilhá-las. As peças passaram a se encaixar lá pelos meus 16, 17 anos, conforme fui conhecendo outros transexuais. Ao ouvir seus relatos, eu pensava: “Essas pessoas estão vivendo o mesmo que eu. Esses questionamentos não são só meus”. A partir daí, comecei a pesquisar e ler a respeito e entendi que talvez eu não fosse cisgênero. Fiquei nesse processo de autoconhecimento de uma forma muito solitária. Aos 20 anos, vi que não dava mais para esperar, que precisava viver a minha verdade e colocar para fora tudo o que estava dentro de mim.


Foi aí que iniciou o processo de transição?


Sim. Comecei a falar para as pessoas que, a partir daquele momento, o meu nome seria Bernardo, pois sou um homem trans. Também passei a tomar hormônios e pensar na cirurgia de transição. Mas esse processo geralmente é bem individual, nem todo transexual toma hormônios e faz cirurgia, e nem por isso deixa de ser trans. E tem o seguinte: não existe a história da tal transição completa. O homem trans que decide passar por esse processo vai ter de tomar hormônios pelo resto da vida. Algumas pessoas apresentam efeitos colaterais, como excesso de energia, que acaba sendo direcionado para a prática de esportes. Eu não tive, digamos, nenhum efeito colateral. Apenas fiquei mais emotivo; hoje, choro com bem mais facilidade do que antes.


CARREIRA Já fazia teatro nessa época?


Me graduei em Atuação Cênica e Direção Teatral aos 20, mas faço teatro desde os 6 anos. Ou seja, por um bom período eu fui atriz. Ainda estou entendendo como minha carreira será daqui em diante. Aliás, o estalo de que sou uma pessoa trans se deu dentro de um processo artístico, para o espetáculo BIRD. Eu interpretava a Maria Elisa, uma adolescente que, de tanto desejar ser homem, um dia acorda com barba. Na época, me questionava por que estava sendo tão difícil fazer essa peça e percebi que era porque me via naquilo. Foi muito complicado mostrar para o mundo que sou trans, pois, como não era mais mulher, deixei de ser chamado para personagens femininos; e ao mesmo tempo, como as pessoas não me enxergavam como homem, eu também não era convocado para papéis masculinos. Fiquei um bom tempo no limbo. Hoje, ainda é uma situação difícil. O teatro, mesmo sendo um espaço teoricamente aberto, ele é aberto para os atores cisgêneros. Quem é cis pode fazer qualquer tipo de personagem; para o trans, não funciona assim. Foi por essa resistência no teatro que o audiovisual surgiu para mim. Encontrei portas abertas no cinema e, agora, na TV. Mas sinto falta de estar no palco.


CINEMA Tem projetos em paralelo à novela?


Durante a pausa nas gravações de Salve-se Quem Puder, fiz dois curtas. Atuei em O Filho Homem, que trata de masculinidade e afetividade. Considero esse um trabalho superpessoal; eu o rodei na sala da minha casa. E dirigi o curta Bhoreal, que é a minha primeira experiência enquanto diretor de cinema. Nele, mostro um pouco da vida de uma drag queen que realiza trabalhos voluntários nas ruas de São Paulo. Esse projeto está participando de diversos festivais.


Pretende investir na direção?


Quero muito. Entendi que, para criar novas narrativas, a gente tem de estar por trás das câmeras escrevendo, produzindo... Tanto é que também planejo explorar o meu lado roteirista, para conseguir compartilhar ainda mais alguns dos meus pontos de vista.


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