À frente da Codevida, Leila Abreu se preocupa em tempo integral com o bem-estar dos animais

“Quintal grande nem sempre tem um cachorro feliz”, afirma a coordenadora

Por: Daniela Paulino & Da Redação &  -  16/09/19  -  12:31

Desde dezembro de 2010 à frente da Coordenadoria de Defesa da Vida Animal, a Codevida (órgão da Prefeitura de Santos ligado à Secretaria de Meio Ambiente), Leila Abreu de Oliveira comemora o fim dos anos de carrocinha, onde baias e baias eram preenchidas com animais que acabavam sendo sacrificados. Desde menina, ela é apaixonada por pets e, inclusive, costumava falar com eles. “Minha mãe achava que eu tinha problema mental”, diz aos risos. E estava ali a sua missão: hoje, comanda vários projetos facilitadores de adoção, mas, mais do que isso, quer mudar a cultura geral sobre o assunto. “Algumas pessoas entendem que, se o animal se encontra na rua, ele está em sofrimento. Não é assim. Há os que são muito felizes na rua. Também temos quem só quer adotar filhotes ou cachorros pequenos. Não se adota animal por centímetro. É preciso mudar essa visão”.


CULTURA Quando você chegou à Codevida, como as coisas funcionavam? 


Já não existia mais a carrocinha, graças a Deus, e a Codevida tinha sido criada há cinco anos. Ainda não existia toda a estrutura sólida e uma equipe completa voltada mesmo ao bem-estar animal. Hoje, temos essa equipe. Gostaríamos que ela fosse maior, porque, quando se trata de bem-estar, é uma mudança cultural.


Refere-se a que exatamente?


Culturalmente, o mundo entende que cães e gatos na rua têm que ser recolhidos e ponto. Não existe nenhum questionamento sobre a qualidade de vida desses animais, o espaço disponível e, principalmente, quais são as necessidades deles. Até as faculdades de Medicina Veterinária sabem muito pouco sobre o comportamento animal. Tudo acaba sendo embasado totalmente nas suas necessidades físicas. Mas várias doenças em animais têm causas emocionais. Eu terminei uma pós-graduação em comportamento animal e vi o que existe de mais moderno no mundo. Acho impressionante como ainda há uma barreira entre o comportamento animal e a saúde física dele. 


Eu posso tirar um animal da rua e fazer mais mal do que bem para ele? 


Pode, porque algumas pessoas entendem que, se o animal se encontra na rua, ele está em sofrimento. A gente escuta muito essa frase: “Pelo menos lá ele tem água e comida, não está exposto ao sofrimento”. É uma cultura da angústia, de achar que o cachorro na rua está sem proteção contra a maldade. Não é assim. Há os que são muito felizes na rua. É a cultura de que morador de rua pode causar algum mal ao animal. Ele pode vir a fazer isso, assim como as pessoas que têm domicílio fixo. Só que esses animais estão no fundo do quintal para a população não ver. 


É aquela atitude de “o que os olhos não veem o coração não sente”?


Isso. Na hora em que eu vejo um animal na rua, vou me preocupar com ele. Esse é o pensamento. Mas é preciso pensar que há dezenas de animais no fundo de quintais sofrendo todo tipo de tortura. E você está preocupado com o cachorro que está na rua coçando muito a orelhinha? A gente precisa lidar com as nossas angústias. “Ai, eu não aguento ver”, também escuto muito isso. Se você não aguenta, o problema é seu, não do animal. Então, saiba lidar com a situação pelo bem dele. É a cultura de “limpar a rua, não quero bicho aqui”. 


Aí a pessoa aciona a Codevida...


E vem com o papo de que o órgão público deve ter espaço para recolher esses animais. Não, ele não precisa ter. São as pessoas que pedem para buscar um cachorro na rua e têm um shih tzu em casa. Elas não vêm adotar aqui. Se vêm, querem um cão “pequenininho”. A gente não adota cachorro por centímetro. A gente adota cachorro por temperamento, que se adequa à família. Até porque tem cão pequeno que ataca criança. 


CONTROLE Como vocês procedem nesse tipo de situação?


Desde 2014, estamos nesse novo local (perto da Santa Casa). Pela visão do bem-estar animal, não se abarrota as baias com quantos animais couber. Se fosse assim, um mataria o outro, as brigas e as doenças seriam frequentes, os mais tímidos ficariam sem comer. Na nova sede, consigo ter um olhar individual para cada um deles. A gente recebe, por mês, a média de 120 pedidos de resgate. Imagina se aceitássemos todos... As pessoas acham que resgate é só aquele que aparece no Facebook. A gente nem tem como olhar em rede social. Quando falo desses 120 pedidos, são só por telefone ou gente que traz na porta mesmo. Não saímos recolhendo animais assim. Os critérios para recolhimento são técnicos. 


Quais são eles? 


A gente pega quando há uma identificação da nossa parte de que aquele animal realmente precisa ser resgatado. Um bichinho atropelado na rua agonizando é um resgate extremamente necessário. No caso do animal mancando, por exemplo, a pessoa pode trazê-lo para atendimento. 


O abrigo resolve? 


Se resolvesse, nós não teríamos tantos animais pelas ruas. O abrigo, por melhor que seja, não se compara a uma casa cheia de amor. Em Santos, você já não encontra tanto animal pela rua por causa do controle populacional que é feito há muitos anos. Isso funciona. São as castrações nos bairros que resolvem. Temos dois ônibus, os castramóveis, que vão até esses locais carentes. É um programa voltado para a população de baixa renda e para os que trabalham resgatando animais. É o mínimo que a Prefeitura pode fazer por essas pessoas que realizam um trabalho tão nobre.


Por que a castração é tão importante?


Hoje, não deixo um animal ser adotado sem estar castrado. Não tem coisa pior. Assim evita-se a superpopulação. Os que vêm para atendimento médico na Codevida também só saem daqui castrados. Existe um estudo da Universidade de São Paulo (USP) e do Conselho Regional de Medicina Veterinária de São Paulo, de 2005. Durante cinco anos, eles fizeram uma análise de feiras de adoção com animais que foram doados sem castrar. Os bichinhos não castrados raramente são levados para castrar. O total de animais que volta às ruas ou se perde é muito grande. Eles entram no cio e fogem.


Existe um acompanhamento?


Não tem como. Não existe uma lei que obrigue ninguém a castrar seu pet. O animal é posse, objeto, em nossas leis. Tal mudança pode demorar. Então, o bichinho sai daqui só castrado, vacinado e microchipado. Não posso exigir da população algo que eu não faça. Primeiro, tenho que dar o exemplo. 


PROGRAMAS Como andam as feiras de adoção?


O animal adulto sempre sobra nas feiras. Por isso, faço questão de levar os mais velhos, para ver se essa visão muda. O animal adulto é bem mais confortável. Ele é muito grato, aprende rápido, tem a necessidade imensa de te agradar. O cachorro adulto possui o quociente intelectual de uma criança de 4 anos. A resistência das pessoas já foi maior nesse sentido, mas está melhorando. A gente não se preocupa com quantidade. A gente quer que o animal tenha a oportunidade de ser feliz. 


Os projetos ajudam nisso?


Sim! Temos vários projetos para incentivar a adoção responsável. Um deles é o Rolê Animal, em que voluntários levam nossos animais para passear todos os dias à tarde. Isso mudou completamente o relacionamento da população com os bichinhos. Vínculos foram criados, houve muitas adoções. Outro projeto é o Padrinho de Fim de Semana. Se você quer adotar um animal, mas tem receio, pode pegá-lo na sexta e devolvê-lo na segunda. Alguns falam: “Ah, coitado do cachorro”. Coitado, não. Aqui, ele ficará trancado numa baia no fim de semana. Assim, pelo menos, vai para a casa de alguém, receber atenção especial. Quase 90% dos casos dão em adoção.


E os animais mais ariscos? 


Eles fazem parte do projeto Hope, que começou neste ano. São animais que têm traumas profundos, alguns com questões genéticas também. São tímidos, introvertidos, não olham nos olhos, têm medo. Nessa situação, respeito e amor podem salvar. E alguns voluntários são bons nesse “resgate” comportamental.


MISSÃO Como você enveredou por esse caminho de engajamento?


Eu sempre gostei de animal. Falava com eles quando era pequena e minha mãe achava que eu tinha problema mental (risos). Nunca fui mordida. Acho que é minha missão. Sou funcionária pública de carreira, assistente de direção da Prefeitura, da área da Educação. Eu fui professora durante cinco anos. Pegava as ninhadas e os cachorros sarnentos que os alunos me traziam e colocava dentro da escola. A minha diretora queria me matar (risos). 


Isso funcionava como?


Eu comecei a perceber, pedagogicamente, que aquelas crianças mais rebeldes e vulneráveis, com histórico de agressividade latente, eram as que conseguia atingir, porque animal não julga. Eu as escolhia para me ajudar a tomar conta desses bichinhos e elas mudavam completamente, sua autoestima aumentava. 


Foi daí que veio a ideia do projeto Mera (Minha Escola Respeita os Animais)?


Podia ter sido (risos). O Mera consiste em uma visita de animais, semanalmente, às escolas municipais, com foco nas crianças do quinto ano. Porque elas já têm 10 anos e responsabilidade. A gente ensina que tudo que elas sentem ou já sentiram os animais sentem também. Fome, tristeza, medo de escuro, de levar bronca, o problema do confinamento... E damos noções básicas de como perceber que aquele animal está sofrendo maus-tratos. No final, o aluno recebe boné da Codevida, onde está escrito “fiscal da vida animal”, como se fosse um “diploma”.


Isso deve fazer diferença nas próximas gerações...


Muito! É importante que mudemos a partir de agora o nosso olhar para o bem-estar dos animais. Mais do que uma casa grande, o bichinho precisa de um ambiente saudável, com suas necessidades atendidas. Nosso foco são os pets. Ainda levaremos bom tempo para virar tutores e não donos de animais. Mas a mudança já começou.


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