A vaca é privatizada, a baleia não!

Num momento em que o Governo Federal propõe privatizar o Porto de Santos, confesso que a frase me tirou o sono

Por: Maxwell Rodrigues  -  27/04/22  -  06:21
Atualizado em 27/04/22 - 08:21
  Foto: Sérgio Furtado/Imagens Aéreas

Eu acordei às 5h, ontem, e fiz aquilo que muitos têm como hábito: abri minhas redes sociais. Por conta dos algoritmos que te direcionam aos conteúdos que mais interessam, cheguei à publicação de um palestrante. Por incrível que pareça, eu vejo esses vídeos até o final imaginando que algo surpreendente irá ocorrer. E a fala desse palestrante começava com uma pergunta: você sabe por que as baleias estão em extinção e as vacas não? E a resposta era: porque as vacas são privatizadas e as baleias, não!


Clique, assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe centenas de benefícios!


Num momento em que o Governo Federal propõe privatizar o Porto de Santos, confesso que a frase me tirou o sono. O argumento do palestrante é forte, mas privatizar um porto sem uma regulação adequada e proteção aos setores que beneficiam as cidades que o abrigam pode ser desastroso. Privatizar pode agilizar a tomada de decisões e reduzir o custo da máquina pública. Sabemos que o retorno da movimentação portuária para o Brasil é gigantesco, mas qual o retorno para a Baixada Santista com a privatização?


Dilema similar é vivido por ecologistas que retratam a superexploração de bens públicos, com o capital podendo poluir ou até matar de modo regulamentado, como no caso de elefantes e baleias. Óleos e chifres de marfim são obtidos e explorados de maneira regulamentada. Mas isso está correto? O neoliberalismo preconiza a mínima intervenção do Estado na economia, que acaba regulamentada pelo mercado. Um sistema que, no fundo, mostra a fragilidade de agentes econômicos privados que agem com base em interesses de curto prazo, reconhecendo os custos sociais e ambientais de suas ações e transferindo isso ao mercado, via sistema de preços. Mas é aí que entra a proteção às baleias, caro leitor!


As cidades afetadas pela privatização devem participar fervorosamente do debate e do processo de proteção da relação Porto-Cidade por meio de sua representatividade, priorizando a proteção dos empregos, as propostas estruturadas no turismo e o fomento do desenvolvimento social. Nosso Porto não pode ser um local para passagem de cargas. Uma parcela significativa disso deve retornar para as cidades onde está instalado. A importância da relação Porto-Cidade ecoa em diversos setores, mas o que há de concreto nela?


Proteger o negócio portuário é mais que criar termos e adjetivos na proposta de desestatização. Nosso Porto não pode nem será extinto, mas a relação com as cidades será? O que é mesmo relação Porto-Cidade? Quem está protegendo essa relação? A vaca “preservada” pela privatização que deu origem às atuais produtoras de leite e carne já quase não existe mais, e as atuais pouco se parecem com ela. Aliás, na Europa, a política agrícola comum prevê pagamentos diretos para produtores preservarem certas espécies da extinção. Este é o papel do agente público.


No processo de desestatização, alguns setores serão extintos. E o que faremos? Como iremos recolocar a mão de obra braçal? Na evolução portuária, é fundamental acompanharmos o mundo e termos agilidade em um universo tão competitivo. Os portos do Brasil estão em franca expansão, se desenvolvendo e com altos volumes de investimentos. É um novo DNA que surge, seja pela diminuição das restrições da pandemia, a Guerra na Ucrânia, um novo arranjo logístico mundial ou até as alterações de mercado a partir de movimentos econômicos partidários. Enfim, o mundo sendo mundo.


Mas, como cuidar dos nossos ancestrais que tanto fizeram pelo nosso porto e dos setores que irão perder espaço num mundo tão veloz? O privado tem metas e trabalha para cumpri-las, enquanto o público foca em planejamento e nem sempre consegue transformá-lo em metas realizáveis. Assim, elevar custos e elitizar o consumo pode fazer com que as próprias vacas prefiram a extinção. E aí vem um sinal vermelho na onda de privatizações: juros altos e inflação combinam com especulação financeira e não com investimentos em infraestrutura.


Por outro lado, as baleias, se fossem privatizadas, provavelmente seriam colocadas em gaiolas pouco maiores que o seu corpo, devido ao tamanho e à mobilidade, para que se movimentassem o mínimo possível e pudessem crescer e engordar rapidamente. Algo similar ao que ocorre com porcos, frangos e gado confinados. Talvez as baleias preferissem a extinção a serem confinadas...


Para toda ação, existe uma reação e confinar certos setores com risco de extinção pode fazer com que tudo aquilo que é planejado não seja concretizado devido às forças ocultas de muitos que querem apenas defender seu ganha-pão! A relação do Porto com a cidade, hoje, deve ir além de privatizar e acompanhar as tendências mundiais com competitividade e dentro de um universo capitalista. Deve também cuidar para que não haja extinção de recursos fundamentais ao crescimento da sociedade, como emprego e economia local.


O público deve planejar como será o porto privatizado e regular para que não haja abusos e, principalmente, possamos ter no maior porto da América latina cargas de valor agregado que gerem empregos, acompanhadas de políticas estruturadas aos setores que orbitam a atividade e a capacitação profissional. A vaca é privatizada e o porto também, mas é indispensável proteger as baleias, os empregos, o desenvolvimento social e os investimentos em nossa região. Alguns entendem que isso é Porto-Cidade e eu também. Acabou o tempo da falácia e dos interesses individuais. Vamos privatizar e proteger aquilo que realmente interessa para a nossa região?


Tudo sobre:
Logo A Tribuna
Newsletter