Não largue o livro!

Flávio Viegas Amoreira. Escritor e membro da Academia Santista de Letras

Por: Flávio Viegas Amoreira  -  04/05/24  -  06:41
  Foto: Pixabay

Muito triste quando um presidente da República exorta seu mais importante ministro a deixar de lado os livros para se ater ao dia a dia da administração. Ler nunca é obstáculo à ação. Ao contrário, sempre é subsídio maior à virtude no agir, no pensar, em compor estratégias para o indivíduo e para o mundo. Num momento em que educadores e homens de pensamento se desdobram para manter os padrões civilizacionais através do cultivo do espírito, é lamentável a fala impensada de quem deveria imprimir as boas práticas culturais.


Se o outro que o antecedeu primou pelo boquirroto anti-intelectualismo e ódio explícito a tudo que cheirasse cultura, Lula deveria fazer o contraponto, já que foi eleito com majoritário apoio dos entes culturais. Os governos de matriz populista sempre se indispuseram com a inteligência e a arte contestadora por princípio. Vargas prendeu Monteiro Lobato por pensar um Brasil maior. Perón deslocou o gênio Borges da gestão de bibliotecas para trabalhar num Jardim Zoológico. Picasso nunca voltou à sua Espanha regida pelo franquismo. E pela esquerda o poeta Mao Tse Tung não honrou a China dos sábios milenares ao perseguir milhares de professores e artistas na execrável Revolução Cultural.


Não cheguemos ao extremo de Pol Pot no Camboja, que encarcerava qualquer um que usasse óculos. Que luxo esquecido foi o governo Kubitschek, que contava com nove escritores no gabinete e tinha seus discursos escritos pelo poeta Augusto Frederico Schmidt. Fidel era um leitor insaciável a ponto de adotar Gabriel Garcia Marquez e De Gaulle e teve como ministro da Cultura o imenso romancista André Malraux.


Não se trata de ideologia , é temperamento em primeira instância. Meu ídolo político Pepe Mujica colocou o livro na cesta básica uruguaia. Francisco, o insuperável papa, foi professor de escrita criativa e é capaz de citar Drummond de cabeça.


Não creio que Lula despreze a cultura e sua trajetória demonstra respeito, a questão é o hábito não estar em seu itinerário de vida. Não confundir diploma com apreço pelo livro. Gostaria o presidente conhecesse a carreira e as obras de uma das nossas maiores escritoras. Carolina Maria de Jesus, negra, favelada, catadora de papelão. Leitora obsessiva nos deu em Quarto de Despejo a obra-prima sobre superação através de papel, lápis e livro!


Não será pelo fato de ser um brilhante catedrático, leitor de Machado e violonista que Haddad, raro caso de esquerda antenada no Brasil, vai descurar da responsabilidade fiscal ou da reforma tributária. Confundir cultivo com elitismo ou erudição com inoperância são vícios do populismo que precisam ser ultrapassados.


Não devemos esquecer que um lenhador americano se fez tribuno e campeão do que entendemos por democracia, Abraham Lincoln. Ninguém precisa ser superintelectual, mas curiosidade e interesse são vitais para um vida plena. Em minhas oficinas literárias, começo sempre propugnando: leiam um poema por dia, um conto por noite e um romance a cada 15 dias. Não sei se muda alguma coisa, mas fará alguém mais feliz. Não, Haddad! Não ponha o livro de lado! Governar é possível, principalmente lendo!


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