Arquitetura de sensações

Flávio Viegas Amoreira. Escritor e membro da Academia Santista de Letras

Por: Flávio Viegas Amoreira  -  28/04/24  -  07:20
Ver a paisagem é despir-se de pensamento, encontrar uma outra arquitetura sem intenção do sempre o mesmo
Ver a paisagem é despir-se de pensamento, encontrar uma outra arquitetura sem intenção do sempre o mesmo   Foto: Matheus Tagé/AT/Arquivo

Quantas cidades sobrepostas de eras e ausências incorporadas na cidade visível, a tão frágil cidade na aparência única vista no momento que passa. Para quem tem olhos de ver, cada manhã é um batizado do olhar por prismas insondáveis aos que passam com pressa.


Numa tarde límpida veem-nos as risadas dos pequenos brincando de roda, a correria dos jovens em pares na saída da escola de há muito jubilada na memória. Por onde andam os casais enamorados naquele muro ou sob a frondosa árvore abatida pela indiferente crueza do poderoso tempo? Que destinos tomaram os casais jurados de paixão, cada um para cada lado, naquela esquina das derradeiras despedidas sem testemunha nem mais aviso?


De quantas lembranças se faz uma cidade muito além das prepotentes certezas de um presente que se tem seguro por achar-se definitiva versão quadriculada do horizonte eterno?


Percorro as mesmas ruas doutras épocas, farejando escombros difusos de outros sons, outros prismas , outros sentidos. Em algum canto, o elo perdido num terreiro de galos ciscando outras auroras nos sobrados avarandados onde nossos mortos ainda balançam redes em suas infindáveis ‘siestas’.


Com algum apuro posso ouvir as composições de trens noturnos por sobre as brumas de outono, o burburinho de turistas de um domingo infinito naquele verão tórrido onde desfeitos tantos sonhos. Sob os destroços do progresso vicejam aqui e ali alguns sinais de poesia por sobre camadas e camadas de passados que não passam enquanto as testemunhas de outrora também não passem. Mas algo sempre resta, pelo testemunho compartilhado, pela teimosia do encanto, pelas fímbrias do espírito não ceifadas pela dureza dos desenlaces.


Sempre resta um solo de jazz na noite, algum breve e bravo sabiá encurralado nos vãos de cimento armado entre as luzes indormidas do porto quando o dia promete nova lida. Sabiás e beija-flores são nossos maiores inspiradores de crônicas.


Ver a paisagem é despir-se de pensamento, encontrar uma outra arquitetura sem intenção do sempre o mesmo, ver com o corpo, amalgamar-se com tudo que não seja ego e finalidade. Molhar os pés nas águas que correm esquecendo-se que rolam, moldando-se com o vento.


Experimenta qualquer pedaço de azul, exercita a pedagogia do devaneio ao caminhar alamedas de outros trechos, a cidade pede que se desabitue do maquinal passo de casa para o trabalho. Espreita, torna-te curioso sobre qualquer novo ramo de hibiscos, não dê as costas ao mar nem nos dias chuvosos.


Qualquer arranha-céu é ínfimo diante da irrepetibilidade da apreensão de só teu instante. A cidade é sempre mais que a soma dos elementos visíveis da paisagem, nota a insondável arquitetura revelada na moldura composta por um par de nuvens. Elas, as nuvens e as ondas, são mestras a ensinar que a cidade nunca se completa sem teu olhar maior que a mesmice da coisa vista. Um sopro no deserto transforma a milenar engenharia de qualquer pirâmide.


Por que não suporia que teus pés sulcando a areia não mudariam todo contorno da praia? Uma cidade se faz agora por ti, assim como por ti os sinos dobram. É preciso repor o lirismo massacrado no dia a dia cego ao milagre lento.


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