Zum-zum-zum

Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  22/09/23  -  06:08
  Foto: FreePik

Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira. Em uma autoironia desmedida, o bordão icônico do mítico narrador esportivo Fiori Gigliotti foi a primeira coisa que me surgiu ao encostar a cabeça no travesseiro, apagar a luz do abajur e ouvir os primeiros zum-zum-zuns saracoteados ao redor do meu ouvido esquerdo. O corpo, já afrouxado em seus metabolismos e imerso naquele torpor de fim do dia, só esperava as pálpebras vencerem o braço de ferro com as órbitas para me catapultar de vez a outros mundos. Porém, o zum-zum-zum me tragou de volta ao pleno estado de alerta. No escuro, aguardava os próximos movimentos.


Que vieram na forma de um longo zuiiim repuxado, ao pé de meu ouvido direito, como um avião a jato que deixa um rastro de fumaça ao cortar o céu. Ensaiei erguer o braço e espantar o invasor, mas o mosquito foi mais veloz. Segui o rastro sonoro até sumir em algum ponto acima de mim, na parede atrás da cama. Imaginei-o tomando fôlego e traçando uma nova tática de ataque. Já totalmente desperto, ainda no escuro, esperei a próxima investida do meu adversário. Apurei os ouvidos, o pescoço hirto, a cabeça mal roçava o travesseiro, coloquei-me de prontidão.


Ouvi ao longe o zum-zum-zum recomeçar, mas, estranhamente, em vez de aproximar-se, afastou-se para o lado oposto, tornou-se débil até quase sumir. Porém, aos poucos, foi novamente encorpando-se, ganhou força e constância. Com o coração aos pulos, levantei o braço como uma torre que se ergue da terra, e no momento em que o zum-zum-zum tornou-se tão agudo quanto o mais agudo da voz de Maria Callas, desci a mão espalmada sem freio ou medida sobre a orelha direita. Paralisado, por um segundo ou dois não consegui discernir se o zumbido que ouvia provinha do meu oponente ou era um ganido do meu próprio cérebro. Por sorte, não me feri: o zumbido foi diminuindo, diminuindo, até cessar. O quarto, então, ficou tão silencioso quanto escuro.


Abri um sorriso de orelha a orelha: ele se foi, venci a partida, Fiori. O júbilo, porém, durou pouco. Como que brotado da parede, o zum-zum-zum ressurgiu já sobre o meu ouvido direito, depois em volta do esquerdo, de novo direito, e assim sucessivamente. Por instinto, peguei o travesseiro, afundei a cara nele e esfreguei, esfreguei, esfreguei. Só parei quando me dei conta de que estava morrendo sufocado. Arfante, constatei o zunido à minha volta, mas entoando a melodia de Aquarela do Brasil: zuuuum/zum-zum-zum-zum/zum-zum/zum-zum... Ou seja, a coisa ficara séria: além de perturbar meu sono, ainda debochava de mim. Em desespero para vencê-lo, resolvi estudar meu oponente.


Alcanço o celular, lá está: ele seria da família dos Culicidae, da ordem Diptera. Tem seus 16 milímetros de comprimento, no máximo, e peso de 2,5 miligramas — eu faria tudo para que não fosse meu sangue a engordá-lo mais. Enquanto eu pesquiso, ele resolve dar uma trégua, talvez por causa da luminosidade da tela, o bichinho é discreto (me dá uma vontade de bocejar...). Então leio que ele pode voar entre uma e quatro horas continuamente, com velocidade entre um e quatro quilômetros por hora (parece que meus olhos estão imersos em areia...). Nessa toada, viaja até dez quilômetros (me espreguiço, o celular quase cai da minha mão...), o nome mosquito vem do latim, musca, que quer dizer ‘voar’. Já pernilongo...


Abri os olhos quando o sol projetava bolinhas de luz no guarda-roupa. O celular estava caído na beirada da cama. Em silêncio, sem zum-zum-zum, o quarto recebia a manhã. Observei as paredes na penumbra, não encontrei mais meu oponente. Foi então que senti uma comichão irresistível na ponta do nariz. Cocei e lá estava: um pequeno monte vermelho e arredondado, a marca da vitória dele, o mosquito. Na próxima noite, espero ter mais sorte. Em tempo: como o nome sugere, pernilongo é por causa das pernas compridas dele.


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