Você tem medo de quê?

Ela, de o menino cair. O menino, ao se pendurar, mas talvez não tivesse idade para associar ao perigo o 'friozinho'

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  08/03/24  -  06:27
  Foto: FreePik

Dia desses, flanando pelas ruas sonolentas do meu bairro, fui chacoalhado por uma voz sobressaltada de mulher: “Menino! Desce daí, você vai se machucar!”. Os devaneios interrompidos, olhei para frente, para trás, para os lados, acima e abaixo, mas não vi nenhuma mulher aflita, tampouco algum menino que pudesse se machucar, caso não descesse seja lá de onde fosse. Em meio à retomada do silêncio, dois pardais passaram em pios e trinados sobre a minha cabeça, entretidos nesses bate-papos de pássaro. E só.


Fiquei pensando de onde teria vindo a voz. Eram tantos muros tapando os olhos para as vidas por trás deles, só me restava também imaginar de qual árvore, parapeito, telhado ou nuvem o menino se arriscava a despencar. Mas como os pensamentos são como bolhas de sabão que vão viajando pelo ar, logo já pouco importava onde fora a cena; tampouco importavam menino e mulher. Só perdurava em mim a voz, pois o timbre e o tremor que o vento trouxe eram uma coisa só: medo.


Assim como o ser humano tem um cérebro, um coração, duas pernas e dois braços, ele tem medo — cruz-credo que não fosse assim! A mulher tinha medo de o menino cair. O menino, por certo, também sentia medo ao se pendurar por aí, mas talvez não tivesse idade para associar ao perigo o friozinho na barriga, que por si só é bem gostoso, convenhamos. O medo é uma das reações mais primais do ser humano e, também, uma das mais subjetivas. Se desconheço o perigo, não tenho medo. Mas, se invento o perigo, me borro todo. Só o medo salva: não por acaso, muita igreja cultiva um inferno pra chamar de seu. Cá estava eu, nessa tarde preguiçosa, parado na calçada, sem inferno à vista, mas encafifado: se o medo é tão subjetivo, é possível temer qualquer coisa.


Quando era criança, tinha medo de cachorro. Na rua, apertava a mão da minha mãe para atravessar, caso um deles despontasse na calçada. Fui perder o medo — depois de o medo me perder... — só quando chegou em casa o Tucson, um lindo e sapeca dálmata, então com três meses. Ainda menor, tinha medo de bola de gás e salsinha: isso mesmo, salsinha. Estrategicamente, minha mãe pendurava galhos de salsinha nas tomadas, para inibir em mim a curiosidade de descobrir o que havia naqueles buraquinhos saindo da parede.


E você? Tem medo de quê? Há quem tenha medo do escuro. Já outros têm medo de ter insônia e por isso mesmo acabam tendo insônia. Também tem uns com medo de cara feia e gente medrosa com tempestade. Povo que tem medo de ladrão, põe cadeado em tudo, até trancar a vida. Há quem tenha medo de ser livre e paúra da prisão. Gente com medo de amar que esconde no guarda-roupa o coração. Gente com tanto medo, mas tanto medo, que esquece a compaixão. E pasmem: há gente tão burra, que não sente medo de nada. E é dessas que eu tenho medo.


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