Sobre o que basta

De repente, ele se levanta, dá a volta na mesa, ergue a outra taça e bebe tudo de um gole só

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  03/05/24  -  06:58
  Foto: FreePik

Hora do almoço, domingo. Um senhor de seus 80 anos chega sozinho ao restaurante. Em passos lentos, mas decididos, vai direto àquela mesa de canto: parece saber que a encontraria à disposição. Arrasta a cadeira, acomoda-se. Ajeita a camisa azul xadrez como se afrouxasse os ombros — ou tirasse um peso de si. O garçom se aproxima, cumprimenta-o, coloca uma garrafa de vinho na mesa, à frente dele. O senhor põe os óculos que colheu do bolso da camisa como o mágico tira coelho da cartola, pega a garrafa e inicia um minucioso exame. Dez minutos depois levanta os olhos do rótulo e faz um sinal.


O garçom se achega, o senhor faz um meneio negativo com a cabeça e devolve-lhe o vinho. O garçom pega a garrafa e se retira. Instantes depois, retorna com outra garrafa e duas taças. Sem nada dizer, o garçom dispõe as taças, uma frente à do senhor, a outra no lado oposto da mesa, abre o vinho, preenche a ambas, faz uma mesura e se afasta.


O senhor ergue a sua taça e bebe. Ignora a outra, o vinho cintilante sob os raios de sol que jorram da janela, logo acima da mesa. Ele dá outro gole, reparo que seus lábios começam a se mover ligeiros, os olhinhos se apertam e ultrapassam o carmim da outra taça: ele fala consigo, confronta-se, busca-se. Onde estará? Em curvas de infância, nos sons e imagens de outrora que costumam emergir desbotados e em fiapos de voz? Será que ele jogava futebol? Brincava de pião e bolinha de gude, que deslizavam levantando torvelinhos de terra nas ruas sem notícia de asfalto lá do tempo dele? Soltou pipa e correu atrás de gatos vadios? Formou-se? Apaixonou-se? Lava roupa em casa ou vai à lavanderia? O que faz, fez, fará da vida? É cirurgião, advogado, dentista? Jornalista, pintor, cozinheiro? Contrabandista, político, escritor? Pela idade avançada, sofre de artrose, tem dor nas costas, pressão alta, palpitações? Dorme cedo ou acorda tarde? Dorme de meias ou com os pés fora do lençol? E, sobretudo, por que estará só?


O senhor enche a própria taça, beberica. Gesticula. Terá filhos? Se os tem, onde estarão? Tem ou teve alguma companhia? Chora no escuro das madrugadas? Sorri na frente do espelho? Sorrirá, de qualquer forma? E quanto às lágrimas, que dessas ninguém escapa? Serão de arrependimento, piedade? De repente, ele se levanta, dá a volta na mesa, ergue a outra taça e bebe tudo de um gole só. Fecha os olhos, devolve o copo, inspira profundamente, dá meia-volta e se retira sem pagar a conta. Quase pulo da cadeira, mas o garçom vê tudo e não diz nada: limita-se a limpar a mesa. Não resisto: “Ele não pagou...”. O garçom balança a cabeça: “Ele, quem?”. “Aquele senhor...”. “Que senhor?”, o garçom espanta-se. “Que estava sentado nesta mesa que você agora está limpando, que bebeu esse vinho, nessas taças”. “Que vinho, que taças?”. Esbocei o gesto de apontar, mas o braço parou a meio caminho: não havia nada na mesa. Dei as costas ao garçom, voltei para meu lugar. Pedi a conta e fui embora.


Jamais saberei quem era aquele senhor ou a razão de beber de duas taças. Jamais saberei, inclusive, se aquele senhor sequer existiu. Como a própria vida, que a cada dia se faz em si mesma, despreocupada de que o vinho seja servido em uma, duas ou mil taças. À vida, basta que haja vinho.


Tudo sobre:
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter