Ronaldo Vaio: Se mais gente tivesse a Lua

Era a hora do lusco-fusco, momento em que a tarde se atira nos braços da noite

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  03/11/23  -  06:43
  Foto: Unsplash

Era a hora do lusco-fusco, momento em que a tarde se atira nos braços da noite, quando saí de casa para comprar pão. Como sempre, fechei a porta, peguei o elevador, passei por três portões e só então assomei à rua. Pensei como o nome ‘apartamento’ nunca foi tão apropriado: é o lugar que aparta, o lugar que isola. O ‘apartar-mento’, claro, fica em um prédio, em cujos muros há mais câmeras por metro quadrado do que em um estúdio de Hollywood. “É para nossa segurança”, dizem os síndicos mundo afora. Como se viver fosse seguro.


Livre dos portões e grades do prédio, já na calçada, ergui os olhos ao céu e tomei um susto feliz: uma imensa, redonda e brilhante Lua me saudava lá de cima. Mas que novidade havia nisso? Sabemos que ela está lá muito antes de nós e provavelmente lá estará muito tempo depois do último de nós fechar os olhos. Mesmo assim, hipnotizado não exatamente pela Lua, mas pela graça que em mim despertava, fui caminhando sem perdê-la de vista. Só tomava o cuidado de não tropeçar, afinal, pouco adianta gazear olhos lúdicos pelo céu se for para levar um tombo na terra. Escapei ileso: sem tombos, cheguei à padaria. Deixei a Lua esperando do lado de fora e entrei.


Peguei a comanda e logo senti um mal-estar: fosse na mãe envergonhada ralhando baixinho com o filho que berrava por chocolate — “você vai ver em casa” —, pela senhora de cabelos de algodão violeta remexendo os brócolis indecisa, ou pela ensandecida atendente dos frios cortando fatias e mais fatias de presunto na máquina que ia e vinha, apenas eu parecia ter uma Lua me esperando lá fora. Pedi, peguei, paguei os pães e saí para reencontrá-la.


Era mesmo minha a Lua. A constatação, em vez de me alegrar, me acabrunhou. Se mais gente tivesse a Lua como eu naquele instante, talvez houvesse menos muros e câmeras: menos segurança e mais simpatia. Se mais gente tivesse a Lua como eu, talvez houvesse menos Israel e Palestina, mais jogo de bola de pés nus, linguagem em que se acomodam todas as partilhas. Se mais gente tivesse a Lua como eu, haveria um mundo em que o valor da vida seria inegociável nas bolsas — que, aliás, nada seriam sem as vidas todo dia condenadas a lhe fazerem girar, como o rato à roda, em um círculo de morte sem sentido. Se mais gente tivesse a Lua como eu, seríamos o riso que falta no rosto alheio, rumo a um futuro já tão antigo, pois que certo: tão imenso e brilhante quanto a Lua, plácida, desfruta em seu manto feito de estrelas.


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