Ronaldo Vaio: Novelo de pão de ló

O coração são fios tecidos pela memória

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  23/02/24  -  06:19
  Foto: FreeePik

O coração é um novelo de fios tecidos pela memória: basta puxar um deles para que ontem e hoje se misturem em um tempo único, que só existe dentro de nós. Esta semana, caminhando por aí com meus novelos, passei em frente a uma doceria — nem sei se o nome é esse —, enfim, uma loja que exibia na vitrine aqueles bolos circulares com um furo no meio, sem recheio, às vezes só uma cobertura. Não por acaso, são chamados de ‘bolo de vó’. E não por acaso, fui transportado à cozinha da minha avó, muitos anos antes. Lá estava ela, materializada a partir de um desses fios, confeccionando — sim, essa é a palavra — o melhor pão de ló de laranja do universo visível e invisível.


Ela se gabava de usar 12 ovos na massa que batia com a mão não sei por quanto tempo — nunca fui bom de receitas. Tampouco sabia, à época, o significado de 12 ovos na massa. Mas meus olhos acompanhavam o processo do início ao fim: daquela pouco atrativa massa cor de areia pálida indo ao forno, até ser retirada já como um aromático, coradinho e suculento bolo de laranja. Essas alquimias de forno e fogão eram para mim um mistério fascinante. O toque final era a calda de limão e açúcar que deslizava pelas bordas deliciosamente arredondadas, despencando em ondas no abismo do prato de porcelana que ela sempre usava para acomodar os bolos, quaisquer que fossem.


O pão de ló era servido em tardes sonolentas, à mesa da cozinha. Sentava-me afoito, meus pés balançando no vazio criado entre mim e o chão pela cadeira. Meu olhar caía certeiro na altura da calda de limão já rígida, sem mais idas e vindas sobre o bolo, pronta a ser eternizada pelo meu paladar. Impossível também esquecer o aroma do café que minha avó coava enquanto o bolo estava no forno, regalia dos adultos, no caso ela própria e meu avô. Para catapultar a dose de açúcar do dia, minha avó me preparava uma groselha, temperada com o restinho do suco de limão que sobrara da calda.


Então chegava o grande momento: minha avó cortava o bolo. Ainda quente em seus meandros, libertava uma fumacinha que se perdia no ar, como um grito silencioso ao ser ferido pela faca. Nessa hora, costumava ter pena do bolo. Mas durava pouco: o justo tempo do primeiro pedaço ser deitado em meu prato, como sempre acontecia — uma dádiva das crianças, que o acúmulo de idade acaba por surrupiar. Apesar do garfo postado com esmero bem ao lado do prato, era com a mão que eu atacava o bolo. Bastavam três ou quatro mordidas para restarem só farelos no prato, e eu me ver diante do momento supremo da comilança: lamber os dedos pegajosos de açúcar.


Após repetir o bolo uma ou duas vezes — com direito a lamber os dedos a cada repetição —, minha mãe chegava e eu me despedia de mais uma tarde gloriosa. Minha mãe, aliás, também preparava o pão de ló, com calda e tudo. Dizia que era a mesma receita da minha avó, que seria já de outras mães e avós antes delas. Mas o sabor nunca foi igual. Talvez porque o gosto não esteja nas coisas, mas em nós mesmos. Aos incautos, em tempo: os 12 ovos deixavam o bolo mais fofo — e a vida, mais suave.


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