Reflexões de uma semana infecciosa

Os remédios fizeram efeito, passou a infecção. Queria mesmo era escrever sobre a caixa de bombons

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  01/12/23  -  06:27
Ninguém vai parar no pronto-socorro por falta do que fazer
Ninguém vai parar no pronto-socorro por falta do que fazer   Foto: Adobe Stock

E fui parar no pronto-socorro. Que frase para começar um texto. Mais bonito seria: e fui parar na praia. Ou fui parar na sorveteria. Ou, quem sabe um dia, fui parar em Dubai. Mas a verdade é que fui parar no pronto-socorro mesmo. E ninguém vai parar no pronto-socorro por falta do que fazer. A dobradinha febre e calafrio, equivalente na doença ao Pelé e ao Coutinho dos gramados, derrubou meu sistema defensivo, e lá estava eu, em desvantagem no placar da vida. A meu lado, outras dezenas de desalentados jogadores aguardavam a vez de serem convocados, talvez para a seleção dos Campos Elíseos.


Só quem fica muito tempo sentado sabe: a tendência do corpo ao perder a paciência é ir escorregando na cadeira. Pois gastei a bermuda nessa enceradeira de desce e sobe corpo até a campainha soar com meu número piscando na tela: chegara o momento de mostrar o meu valor de doente. Esfreguei as mãos — de frio —, levantei e fui em direção ao meu destino, naquele instante bem modesto, na sala de consultas do doutor. Porta aberta, entrei sem bater, nem lembro se houve “bom dia” do lado de lá. Se não houve, nem culpo o doutor, pois são tantas doenças à espreita no mundo, falta tempo para os meros bons dias. E sabemos todos, quem está ali pode ter tudo na vida, mas tossindo e ardendo em febre, o que falta, justamente, é um bom dia.


Livre dessas especulações mesquinhas, sentei-me na única cadeira do acanhado consultório, no canto oposto à mesa do doutor, que iniciou o interrogatório. Febre? Sim. Dor? Depende. Vômito? Não. Perda de apetite? Jamais. Palpitações? Só de amor pela minha esposa. Juro que me pareceu que o doutor puxou um baralho de tarô debaixo da mesa e deitou umas cartas sobre o teclado do computador antes de, mirando um ponto inexato na parede atrás de mim (onde havia uma mosca ciscando), soltar o diagnóstico: “infecção”. Claro que o tarô foi delírio da febre. Importante é que deixei o consultório carregando um receituário robusto, com quatro remédios, como quatro cavaleiros do apocalipse da minha dor, pois todos fabricados pelo mesmo laboratório. Confiança é tudo.


Mas não quero falar mais de doença. Os remédios fizeram efeito, passou a infecção. Na verdade, desde o princípio deste texto, queria mesmo era escrever sobre a caixa de bombons. Dia desses, já na minha agonia da infecção, estava lá, em cima da mesa da cozinha, por certo trazida pela minha mulher. A caixa ainda estava embrulhada no plástico, intacta, só aguardando o despertar de nossa sanha doceira, que não tardaria. No máximo, se mostraria à noite, no sofá, um filme na tevê, ela e eu postergando pegar ‘aquele’ bombom, por saber que agrada ao gosto do outro.


Mas naquele momento, na cozinha, apenas peguei a caixa nas mãos para constatar: meu Deus, eu cresci! Lembro daquela mesma caixa há poucos anos, era larga, pesada, minha mão a agarrava como se fosse uma boca aberta. Agora, quase consigo tocar uns dedos nos outros, na extremidade. Que milagre seria esse? Fiquei tão feliz, não resisti, arranquei o plástico, mas quando abri a caixa, notei também ali algo estranho. Minha lembrança era de dezenas de bombons se atropelando uns sobre os outros. Mas havia apenas uma tímida camada e os bombons mal se tocavam.


Coisa chata crescer. A vida perde a magia — e os bombons. Lembrei que era hora de tomar o remédio.


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