Reflexões de uma manhã qualquer

Minhas manhãs são todas iguais, porém em tudo diferentes

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  25/08/23  -  06:05
  Foto: Pixabay

Não sei se para você, meu caro leitor, costuma ser assim, mas as minhas manhãs são todas iguais, porém em tudo diferentes. A contradição poderia ser creditada à sonolência, já que escrevo este texto nos tímidos arroubos lilases do início de uma dessas manhãs de café e pão com manteiga, tão prosaicos que parecem requentados – o café, o pão e a manhã. Mas as aparências são apenas isso, aparências, e hoje enganam apenas a quem apraz uma doce ilusão. Assim, o que à primeira vista se afigura contradição é na verdade um maravilhoso jogo de trapezistas, em que os iguais se arranjam em suas posições, o café, a xícara, a mesa, a cadeira, o livro e eu, todos articulados e equilibrados da mesma forma possível para preparar o salto. Este sim, será sempre diverso do anterior: pois o picadeiro é o grande abismo da vida dentro de nós; quem sabe onde o artista pousará? Em que luzes ou sombras tocarão os seus pés? É o trivial maravilhando-se: em meio a um bocejo de tédio, o frio na barriga...


Mas nem tanto ao tédio, nem tanto à ansiedade: apenas mais esta manhã de vagar das ideias, em que me permito uma carruagem de cavalos sequiosos, mas sob rédeas de cocheiro precavido. O salto do trapezista começou na leitura de O Abraço dos Livros, última crônica de Um Intrépido Livreiro nos Trópicos, obra do meu amigo José Luiz Tahan. Ele narra a busca de uma mulher por um livro que pudesse reaproximá-la do pai, de quem foi afastada pelo oceano turbulento, e pútrido, da polarização política. Entre idas e vindas de sugestões, chegou-se a O Livro dos Abraços, do uruguaio Eduardo Galeano. Foi a deixa para Tahan desejar um abraço de livros a quem na página estivesse, e a mim, a catapulta que me lançou a uma miríade de abraços prováveis, de abraços ansiados, de abraços necessários.


A começar pelo abraço daquele motorista de aplicativo que transformou o próprio carro em ambulância para salvar uma vida. Foi notícia, dia desses: ao atender um chamado, deparou-se com um homem passando mal, acompanhado de familiares. Ligou o pisca-alerta, muniu-se da buzina e abriu caminho ao hospital. Só sossegou ao ver que o homem havia sido acolhido adequadamente. E não cobrou a corrida: “quando a gente dá, recebe em dobro”. Um abraço sem braços, mas que enlaça o mundo. Como um outro dia, aqui na esquina de casa. Uma senhorinha de cabelo todo branco, apoiada na bengala, o corpo arqueado, lutava contra os carros e as próprias limitações na batalha para atravessar a rua. Na calçada do outro lado, um homem notou a hesitação da senhora e não teve dúvidas: desviou-se do próprio trajeto e precipitou-se à rua, driblando os veículos indiferentes até chegar ao meio da via, parar e abrir os braços em cruz, em uma cena de beleza e significado transcendentes: que fosse imolado no meio da rua, desde que a senhora conseguisse seguir adiante. Os carros foram estancando ao comando daquele Moisés moderno abrindo um mar de lata multicor. A senhora, concentrada em si, deu um primeiro passo, depois outro, e com a bengala lhe preparando cada movimento do andar compassado, alcançou o outro lado da rua, o destino desejado, mas nem sempre alcançado.


Nessa história também vi um abraço e de quem nem sequer do outro conhecia o nome. Há outros e diversos abraços pelo mundo, feitos de lágrimas e risos, gratidão e empatia. Seja de braços abertos ou alma escancarada, o importante é abraçar o outro, sempre. Afinal, como escreve o próprio Galeano no seu Livro dos Abraços citado, “quando eu não estiver, o vento estará, continuará estando”. Que eu seja, então, o sopro que embale ao menos uma vida.


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