Oração

Lembro das noites na infância, minha mãe à beira da cama puxava um Pai-Nosso e uma Ave-Maria

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  20/10/23  -  06:32
  Foto: Pixabay

Lembro das noites na infância, minha mãe à beira da cama puxava um Pai-Nosso e uma Ave-Maria que eu perseguia em tímidos sopros dos lábios, sem muita convicção. No instante seguinte ao amém, ela se debruçava sobre o meu rosto e se certificava de meus olhos cambaleando nas órbitas. Beijava-me a testa, levantava-se sem movimentos bruscos e, em passos miúdos, arrastados do chinelo felpudo, se dirigia à porta do quarto. Porém, ao apagar a luz, um novo mundo se acendia. Sem dissimulações, eu abria os olhos à penumbra que a mim se fazia aconchego, em vez de ameaça. Ali, naquela imensa solidão do pequeno quarto, no silêncio concreto de uma madrugada próxima, o menino começaria, de fato, a orar.


Os versos de um Pai-Nosso que está no céu ou de uma Ave-Maria cheia de graça diluíam-se a apelos urgentes, pois nascidos do âmago, ainda que pueril em suas fantasias e sonhos. Não que um pai não pudesse estar nos céus ou que a Maria a quem se saudava fosse desprovida de graça, mas, para ecoar nos confins do universo, a palavra precisa enrodilhar-se em um longo e doce abraço no coração.


Assim, as orações instituídas, naquelas noites mágicas da infância, eram substituídas por emoções que tomavam a forma de murmúrios, palavras de barro moldadas pela intuição do que se esconde atrás dos véus do cotidiano, descortinando o verdadeiro sentido e norte da existência sobre esta terra, ao proclamar a meu pai, em toda parte onde esteja, que conceda à tua e à minha vida a sua maior e possível realização, antes que a morte, a vertigem da humildade necessária, venha ao nosso encontro.


Não tenho dúvida de que Deus me ouvia: a presença dessa atenção reverberava de tal forma, que parecia nascida em mim mesmo, como se Deus, afinal, também fosse eu. Não posso afirmar, tampouco existe alguém que o possa negar. Se Deus for uma centelha cintilando em cada ser ou coisa criados, aos males sempre haverá, neles próprios, inoculado, o antídoto das dores. Não tenho dúvida de que Deus me ouvia, simplesmente porque a palavra das crianças, por mais que seja errática e incerta, ainda é pura. Não da pureza que comumente se atribui à criança, mas de uma palavra que não vê na criança obstáculo, seja moral ou emocional, para realizar-se inteira em seu sentido mais profundo e velado.


Que assim seja. E que essa palavra infantil, que flui sem medos, conceitos ou preconceitos, que flui como os rios, ao sabor de sua potência plena, limitados apenas pelas próprias margens que os constituem, que essa palavra possa atravessar o tempo do corpo, que chegue aqui, agora, neste homem que já disse tantas palavras vazias, para que possa clamar aos céus da única maneira possível: pelas orações daquelas noites de criança, em que o amanhã estaria apenas na próxima aurora, hoje e sempre, amém.


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