O amanhã sou eu

Sobre a mesa, uma antiga fotografia saída de alguma caixa do fundo dos armários dispara as memórias

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  06/10/23  -  06:02
  Foto: Pixabay

Uma xícara com café fumegante, a colher enrodilhando-se na breve espuma de seu próprio redemoinho, e sobre a mesa uma antiga fotografia saída de alguma caixa do fundo dos armários. Se há portais para outras dimensões físicas, como especula-se, mais frequentes ainda serão os portais para outras dimensões nossas. Lugares e tempos em que o futuro é sempre o que espreita na próxima esquina, o passado é uma geografia imprecisa e o presente inexiste, esmagado pelo peso de tanto coração que não cabe em si pela expectativa da vida que se foi, mas ainda por ser apreendida.


Na foto sobre a mesa há um homem e uma mulher. Com guarda-sol e cadeira embaixo dos braços, sunga e maiô, estão a caminho da praia, na calçada em frente a uma casa. O cuidado com que sorvo o café para evitar macular ainda mais a imagem — há nela os desbotados do tempo — se mistura ao carinho imenso que me toma, de tal forma que me pego então bebendo a foto pela garganta estrangulada e observando o café em um olhar de garoa. Na foto, lado a lado, estão meu pai e minha tia, ele então na metade de seus quarenta anos, ela tocando os cinquenta. Estão em Peruíbe, em alguma manhã de sol de outra era. Trocam uma expressão cúmplice, tranquila, um olhar de esguelha serelepe e um sorrisinho irônico em cada lábio, enquanto equilibram os apetrechos de praia.


Tento imaginar o que um disse para o outro para terem perenemente congeladas nos rostos aquelas expressões marotas — e tão lindas. Que graça? Que piada? Que traquinagem evocada, de dois irmãos que, por mais que já estivessem consumidos pela vida adulta, talvez ainda vissem um no outro a infância que um dia partilharam?


Meu desejo é rasgar a foto para invadi-la, me posicionar no meio dos dois e saber o que disseram naquele dia já esmaecido nos calendários. Largo a xícara, fecho os olhos e, ao levemente tocar a superfície da foto, coloco todo meu ser na ponta dos dedos para sentir em cada célula a textura acrílica, passeando a imagem na mente à medida que meus dedos deslizam pelo papel fotográfico.


Então sinto uma aspereza estranha à foto, mas, antes que pudesse abrir os olhos, minha mão é tragada para um abismo rasgado na imagem, até que todo meu corpo cai do outro lado desse precipício. De repente, lá adiante estão a praia, o som do mar, as ondas a distância afagando a areia, as casas e terrenos de um e do outro lado da rua: meus pés sofrem no concreto quente da manhã de verão. Vejo meu pai à direita e minha tia à esquerda; à nossa frente, meu primo empunha uma polaroid, prestes a apertar o botão.


“Onde estaremos amanhã, neste instante?”, pergunta meu pai. “Pouco importa, desde que este instante seja nossa melhor herança para o amanhã”, responde minha tia. Ambos me abraçam. “Sabíamos que você viria”, enquanto abrem o sorriso matreiro para contrastar com meu olhar já de enxurrada deslizando pelo rosto. Ouço o ‘plac’ da câmera, mas nem há tempo de rever meu primo: abro os olhos e ali está a foto, sobre a mesa. Na xícara, o que resta do café já esfriou. Na alma, um sopro cálido garante: o amanhã sou eu.


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