Minha companheira insônia

Nesse momento, ela pendura-se em minha orelha e, como quem mexe em um dial, sintoniza a audição para captar

Por: Ronaldo Vaio  -  19/04/24  -  06:26
  Foto: Imagem Ilustrativa/FreePik

Da noite, diz-se que os sonhos são viagens, que a alma sai do corpo e perambula pelos astrais em busca de aventura ou purgação. Mal sabem os incautos: pior viagem é a da insônia, quando a alma, trancada no corpo a sete chaves, tenta voar pelos olhos esbugalhados. Se ainda deitada na cama, a insônia pega pelas pernas com sua impaciência: as pernas dobram, desdobram, encolhem, estendem, abrem e fecham. Enrolam-se no lençol, tornam-se múmia, e quando as pernas esgotam todos os movimentos horizontais possíveis, a insônia clama por levantar. De pé, o destino é a tevê ou a geladeira. Geralmente, a tevê: a sala é sempre mais próxima do quarto, a geladeira acaba restando como medida extrema. Mas não se enganem: ainda que extrema, medida mais corriqueira do que se gostaria.


A insônia se esbalda em frente à tevê. Passa com desenvoltura por Corujão, Tapete Persa, Comédia na Madrugada, Fala que Eu Te Escuto. Adora apertar os botões do controle remoto, não fica mais de cinco segundos em nenhum canal — ao que dou graças: pelo menos isso... A insônia é irrequieta, pega meus olhos e os crava primeiro no teto, para decifrar as sombras que emanam da tevê. Depois os faz escorregar até a cortina bailarina, dançando à brisa da madrugada. Juro que enxergo as marolas de um hula hula nas curvas do linho. Pelos cantos da sala, desgostosa da solidão, a insônia começa a enxergar pelos meus olhos criaturas indefinidas de quatro patas esgueirando-se, fantasmas desdentados pairando, ETs de cabeça pontuda brilhando verdes no escuro.


A insônia se ressente da quietude. De novo apropria-se de minhas pernas esticadas em frente à tevê, onde agora a Samara da cara de cabelo se retorce parecendo um cubo mágico, e começa a balançar meus pés — a insônia, não a Samara —, como se fossem para-brisas enlouquecidos, apenas para produzir um macabro som de rec-rec-rec no couro do sofá. Nesse momento, a insônia pendura-se em minha orelha e, como quem mexe em um dial, sintoniza a audição para captar todos os estalidos do prédio, fruto da artrose discreta das estruturas. E lá vem a descarga do oitavo andar: o fluxo parece correr pelas paredes como a seiva no fundo do tronco das árvores. E porque a insônia também é curiosa, usa meu cérebro alerta para conjecturar sobre a natureza do que vem descendo o prédio na enxurrada da privada: resquícios de um caldo verde, um pão com salsicha ou, quem sabe, até as sobras da feijoada do almoço de quarta-feira.


A tentativa de adivinhação abriu o apetite da insônia. Nem preciso dizer que ela me levantou do sofá e me carregou à cozinha. Fiz menção de acender a luz, mas a insônia não permitiu: ela se esbalda em ambientes escuros. Abre a geladeira e nem precisa procurar muito para encontrar os pedaços restantes da pizza do jantar, portuguesa com certeza. Antes que me seja permitido ponderar, a insônia já está com um pedaço nas minhas mãos, dos três que comeria. Pela minha boca, lógico. Como ela costuma engasgar, já se serve de um copo de coca-cola. Eu tentei evitar, mas parece que ninguém ensinou bons modos à insônia, que deixa escapar uma sonora eructação, zombeteiramente celebrada pelos meus dentes abertos em um sorriso típico dela. À minha revelia, claro.


Satisfeita, a insônia me levou de volta à sala, não sem antes lamber meus dedos engordurados. Esparramou-se com meu corpo no sofá. Na tevê, o apresentador do primeiro telejornal da manhã escarafuncha com os dedos uma tela. Pela janela, a noite se torna cinza sob um frenesi sonoro de pardais e bem-te-vis. A insônia se entristece, me olha com doçura, se despede e vai embora. Ainda no sofá, fecho os olhos. Dura pouco: do quarto, o despertador me avisa que já é hora de começar um novo dia.


Tudo sobre:
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter