É tia, mas poderia ser mãe

Jornalista. Editor de Galeria

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  17/11/23  -  06:16
Tenho a sorte de conviver com uma tia dessas, mas que é muito mais: é da vida toda. Soube do meu nascimento antes de mim, é madrinha de batismo e, até, fada, pela proteção e pelo cuidado
Tenho a sorte de conviver com uma tia dessas, mas que é muito mais: é da vida toda. Soube do meu nascimento antes de mim, é madrinha de batismo e, até, fada, pela proteção e pelo cuidado   Foto: Alexsander Ferraz/ AT

Todo mundo é muita gente, mas não é raro a qualquer um se deparar ao longo da vida com uma tia que poderia ser mãe. Seja aquela tia da cantina da escola, que por razões desconhecidas, mas sempre amorosas, volta e meia oferecia um punhado de balas, uma paçoca ou até um mistinho para aplacar a fome, naqueles dias em que a lancheira se apresentava menos inspirada. Ou fosse a tia do cafezinho, que sabe como ninguém dosar a medida do açúcar, tirando o amargor que não pode caber (também) na xicrinha — a não ser que de amargor haja o justo gosto, para melhor acomodar a doçura dela, tia: somos feitos de contrastes.


Há, ainda, a tia da feira, que, por motivos misteriosos, conosco não faz jus ao cerimonial irônico do ‘se não pagar também não leva’: é sempre meio quilo a mais, meia dúzia a mais, um tanto a mais do que poderia ser chamado amor, pois sempre acompanhado de um sorriso e uma cintilância de olhar que não se encontram em muitas ditas sólidas relações, mas na verdade tão murchadas, que acabam com jeito e forma de xepa. E há também a tia do hospital, aquela chamada de enfermeira, mas que em alguns casos, vestida de branco, está vestida de anjo, com o remédio e a palavra certos, na hipótese de que a palavra, por si só, já não baste como remédio. Seja como for, a precisão da visita ao pé da cama, na dose certa da delicadeza e da empatia, são bálsamo a quem tão fragilizado está.


Reparem, é sempre a tia: se for tio, resvala-se no pavê, tão tradicional no fim do ano quanto Roberto Carlos e Papai Noel. E lá vem a pérola: é pavê ou pá comê? Se for tio, é também o tio do zap-zap, das piadas pálidas de tão sem graça. Esse tio das esquinas é imediatamente associado a inconveniências (claro, sempre haverá exceções), ao contrário das tias, ornadas por uma sensibilidade amorosa. Aliás, por falar em Roberto Carlos, até ele homenageou a sua Tia Amélia, na canção Minha Tia, cuja “aquela sua comidinha” ele não comia em restaurantes, como diz a letra.


Tenho a sorte de conviver com uma tia dessas, mas que é muito mais: é da vida toda. Soube do meu nascimento antes de mim, é madrinha de batismo e, até, fada, pela proteção e pelo cuidado. Era ela que no começo das tardes se virava em um macaquinho que ia pela floresta visitar a avó, e ele ia, ia, ia, ia, lá chegando apenas quando meus olhos se fechavam em outros sonhos. Que me levou ao primeiro show da vida e prepara aquele bacalhau assado feito na medida para o meu paladar. Que me acolheu de madrugada sem nem sequer uma palavra ríspida, após eu destruir o carro em um estúpido acidente: bastou-lhe saber que tudo estava bem, no dia seguinte conserta-se o carro. Aliás, desde sempre tudo estaria bem, por suas mãos e seu jeito. Que se consuma em preocupações demasiadas, fazer o quê? É da vida de quem vive. Mas só há dores se há também amores.


Por falar em dor, hoje em dia, apesar de uma dor aqui, uma pontada acolá, de os passos já não serem tão firmes, do corpo balançar nas vagas do tempo, ainda insiste em pegar na mão e acompanhar ao lado. Agora é minha vez de reduzir o passo, para te acolher e seguir junto até o fim, minha tia que poderia ser mãe. E quem disse que não foi? Houve dias, tantos nesses anos todos, que outra palavra a ti não cabe para definir o gesto, o olhar, o coração. Parido uma vez, por ti, tenho duas mães.


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