Cento e trinta anos em 130 linhas

Começava então a virar as páginas, a descortinar aquele mundo, satisfeito com o som peculiar do papel e aroma de tinta

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  22/03/24  -  06:33
  Foto: Sílvio Luiz/AT

Caro leitor, nem se incomode em contar: esta crônica não tem 130 linhas. O título é uma licença poética, só possível pelo tamanho da história que carrega. Uma história construída nas ruas, avenidas e praças, em casas e edifícios, legislativos, judiciários, executivos, nos teatros e palcos, tecida no que dói e no que proporciona prazer, enfim, feita na lágrima, que se lamenta, mas também no riso, que renova a esperança. Seja como for, uma história construída sobretudo na memória e no coração das pessoas.


Também na minha memória e no meu coração. Lá pelos seis, sete anos, quando comecei a juntar sílabas que, de repente, formavam palavras e, por magia, ganhavam sentido, era principalmente nele que exercitava essa nova descoberta, sem nem suspeitar que uns 40 anos depois eu estaria do outro lado daquelas páginas. Lembro de meu pai chegando em casa no final das tardes com aquele maço de papel dobrado embaixo do braço e de colocá-lo sobre o aparador, na sala. Curioso pelas formas das letras que eu já exercitava na escola, pegava o maço, colocava-o no chão, me deitava em frente e o desdobrava, como se de um fizesse muitos. No verão, havia um prazer extra: com o corpo bem esparramado no piso, o ladrilho geladinho atenuava o calor.


Começava então a virar as páginas, a descortinar aquele mundo, satisfeito com o som peculiar do papel ao acariciar o ar, com o aroma da tinta na folha, a textura macia nas minhas mãos, cujos dedos terminavam por ficar enegrecidos, ressaltando as linhas retorcidas das digitais. Entendia muito pouco do que lia. Por isso, as páginas de esportes e policiais eram mais fáceis de decifrar. Dessas últimas, entre alguém que teve “a carteira furtada em um coletivo apinhado” a uma vítima do “abraço amoroso” nas cercanias do Porto, a seção policial de então parecia Turma da Mônica comparada à de hoje em dia. Sim, o mundo mudou muito.


Aliás, o mundo vem mudando desde sempre. Tanto que, pasmem, até eu cresci. Só não mudou a presença do jornal lá em casa, todo santo dia. Em meados dos anos 90, era a época de juntar selinhos para preencher cartelas e concorrer a prêmios. Por ocasião dos 100 anos de A Tribuna, meus pais foram afortunados: ganharam uma caderneta de poupança no valor de R$ 5 mil. O prêmio final era um apartamento. Esse não deu. Mas o registro da entrega da caderneta de poupança está aí até hoje. Reler o depoimento de meus pais na matéria me faz revivê-los de tal forma que, para vê-los de novo na minha frente — eles que já não estão mais aqui —, basta fechar os olhos com a força do carinho. Posso ouvir a entonação e ver o sorriso de minha mãe ao dizer que, “como não costumamos jogar em bingos ou loterias, não sabemos qual dos dois tem mais sorte”, por terem concorrido com duas cartelas cada um.


Também foi por essa época que uma notícia me causou tanto impacto, que até me arrepia ao lembrar. Aliás, não foi nem a notícia em si, mas o seu título. Em 10 de dezembro de 1995, a página de esportes estampava: “Pode escrever, vamos ganhar”. A frase era do então goleiro do Santos, Edinho, filho do Rei Pelé. O time estava na semifinal do Brasileirão contra o Fluminense. Na partida de ida, no Rio, o Peixe tinha perdido por 4 a 1. Naquela tarde, no Pacaembu, precisava ganhar por uma diferença de três gols. Fez 5 a 2. O resto é história.


Como também já são história os anos na faculdade de Jornalismo, em que a sala de aula orbitava A Tribuna como um planeta ao redor do sol, uma relação inevitável a qualquer curso de comunicação na Baixada Santista. A meninice tinha acabado, a leitura do jornal se tornara bem mais séria e comprometida. Mesmo assim, ainda não me imaginava deste lado. Terminei a faculdade, e somente uma ou duas voltas ao mundo depois, uma sucessão de felizes encontros me trouxe até você, aqui, hoje, leitor. Um lugar que eu espero honrar, ajudando a criar outras tantas boas memórias, a serem guardadas nos corações de outros ronaldos por esse mundo afora. Para encerrar, por curiosidade: a crônica tem 110 linhas.


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