A culpa de quem rejeita

São muitos os brancos de hoje a repetir que “não escravizei ninguém e, por isso, não tenho culpa”

Por: Rafael Motta  -  26/04/24  -  06:31
  Foto: FreePik

Aqui está uma tardia novidade vinda de Portugal. É a notícia pela qual o presidente desse país, Marcelo Rebelo de Sousa, “assume total responsabilidade” pelo que se deu na escravização de quase 5 milhões de pessoas no Brasil em mais de 300 anos de colônia e império.


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“Temos que pagar os custos. (…) Existem ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Existem bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos consertar isso”, declarou Sousa.


Tal boa vontade talvez não se traduzisse em reparação nem mesmo se Portugal, no sentido inverso, se tornasse colônia brasileira e tudo que há nesse país — até as pessoas, tratadas como propriedade na escravidão — fosse entregue de papel passado ao Brasil. Nem seria desejável, tanto por razões humanitárias quanto lógicas, pois o Brasil jamais cuidou bem de si mesmo.


E quem seria compensado pelos danos àqueles milhões de seres humanos e seus descendentes, que ainda hoje sofrem com algo oficialmente encerrado em 1888? Há de se chegar a uma conclusão, e ela não virá amanhã. Mas os brasileiros mesmos precisam entender o que foi o período escravagista e o que ele ainda significa no cotidiano neste ano da graça de 2024.


Quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, calcula-se que 1,2 milhão de pretos escravizados foram largados ao mundo. Não foram aproveitados como assalariados nos serviços que faziam à força. Esses trabalhos acabaram ocupados por pobres imigrantes europeus, cuja vinda ao Brasil era incentivada por uma política nacional de branqueamento da pele do povo por meio de uma esperada miscigenação racial. Davam-se passagens de navio às famílias que viessem pela primeira vez. O governo pagava aos que agenciavam essas viagens.


Para onde podiam ir os libertos? Não seria para bairros nobres. Também não, para a beira das praias. Com um sinal que os acompanhava em toda parte — a cor —, acabaram onde lhes foi possível: os morros, onde surgiram favelas; as periferias distantes e suas casas abandonadas, transformadas em cortiços. Integrados os europeus e seus sucessores à vida nacional, enfim restaram aos pretos empregos mal remunerados. Como sair desse ciclo sem ajuda?


E se um escravizado quisesse reparação do governo brasileiro? Não conseguiria: em 1890, o então ministro da Fazenda, Rui Barbosa — autor de uma conclusão sempre repetida pela qual “o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” —, mandou queimar todos os registros de cartório sobre a compra e a venda de escravizados. A ideia era impedir que fazendeiros pedissem reparação ou que a nova República indenizasse quem sofreu a escravidão.


São muitos os brancos de hoje a repetir que “não escravizei ninguém e, por isso, não tenho culpa”. Quando se negam a aceitar reparação histórica, têm. “Até um negro chegar à posição de um branco, tem de saber dez vezes mais do que o branco. Porque em cada branco está um senhor de engenho, um feitor de fazenda”, como dizia o falecido ator negro Grande Otelo.


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