O voto de Minerva sempre a favor da defesa

É profundamente lamentável que tenhamos chegado a um ponto em que precisamos de uma lei para reiterar o óbvio

Por: Paulo de Jesus  -  13/04/24  -  07:15
Em caso de empate, deve-se decidir em favor do réu
Em caso de empate, deve-se decidir em favor do réu   Foto: Reprodução/Pixabay

No Brasil, é uma realidade desconcertante que questões de clareza incontestável necessitem de legislação para sua resolução, quando poderiam ser facilmente determinadas pela jurisprudência. A recente sanção da Lei 14.836/24 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva é apenas mais um exemplo desse paradoxo jurídico que permeia nosso sistema legal. Esta legislação, que determina a proclamação imediata da decisão mais favorável ao réu em caso de empate nos tribunais, é um testemunho da nossa falência em confiar na sabedoria e na tradição do direito.


É profundamente lamentável que tenhamos chegado a um ponto em que precisamos de uma lei para reiterar o óbvio: que em caso de empate, deve-se decidir em favor do réu. Essa não é uma noção nova, nem uma descoberta revolucionária; há séculos, a justiça em sociedades civilizadas seguiu esse princípio fundamental. A história nos conta sobre o voto de Minerva na mitologia grega, onde a própria deusa da sabedoria precisou intervir para decidir a favor do réu em um júri. Todavia, apesar desse exemplo antiquíssimo, aqui estamos nós, em pleno século XXI, codificando o senso comum em leis.


A sanção desta legislação levanta questões profundas sobre a nossa confiança na própria estrutura judiciária. Se os tribunais são incapazes de resolver um impasse com resolução indiscutível sem a intervenção legislativa, qual é a verdadeira eficácia da nossa justiça? Afinal, se até mesmo o empate nos deixa perplexos, como podemos confiar nas decisões de casos complexos que demandam uma efetiva participação do Poder Judiciário para sua solução?


Além disso, a medida de permitir a expedição de habeas corpus de ofício é uma admissão de que a presunção de inocência e a proteção da liberdade individual não são garantias suficientes em nosso sistema legal. Se um juiz não pode reconhecer prontamente uma prisão ilegal ou uma ameaça à liberdade sem a necessidade de uma lei expressa, então o que isso diz sobre o estado de nossa justiça?


O habeas corpus, esse remédio heróico em favor da liberdade, deveria ser a pedra angular sobre a qual se constrói nosso sistema legal. Contudo, ao invés de acreditar na sua eficácia e na sabedoria dos magistrados para aplicá-lo de forma justa e pronta, estamos agora codificando sua utilização em lei, como se fosse uma medida extraordinária ao invés de um direito inalienável.


É inegável que a segurança jurídica é um princípio fundamental em qualquer sistema legal, mas não deve ser alcançada às custas da justiça e da liberdade individual. Ao invés de confiar nos princípios constitucionais e na jurisprudência, estamos optando por legislar sobre questões que deveriam ser óbvias. Isso não é apenas um sintoma de uma justiça frágil, mas também um lembrete doloroso de que, às vezes, é essencial olhar para trás para seguir em frente. O voto de Minerva sempre será a favor da defesa.


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