Sobre vozes e egos

'A Noite que Mudou o Pop' foi lançado pela Netflix nesta última semana

Por: Matheus Tagé  -  05/02/24  -  06:48
A obra marcou a cultura pop de muitas formas
A obra marcou a cultura pop de muitas formas   Foto: Divulgação

Na entrada do estúdio, um lembrete adverte: ‘Deixe seu ego na porta’. Este é um detalhe importante que ganha destaque no documentário A Noite que Mudou o Pop, lançado pela Netflix nesta última semana. A produção conta a história por trás da gravação da icônica


canção We Are the World, que reuniu os maiores artistas em atividade no início da década de 1980. A partir da composição de Lionel Richie e Michael Jackson, e da direção musical de Quincy Jones, o projeto juntou mais de 40 astros do pop internacional, na iniciativa USA for Africa.


É interessante observar a construção um tanto caótica de uma obra que marcou a cultura pop de muitas formas. Deixando de lado as críticas estéticas – causadas em parte por conta da massificação e hipermidiatização, características de qualquer produto pop– atentemos para questões, fatos e tramas que se precipitam sobre a problemática sonora e vão muito


além da canção, já cristalizada no imaginário coletivo.


Naquele momento,Quincy Jones dirigia o maior elenco do mundo sob condições nada favoráveis. Foi na madrugada, após o American Music Awards de 1985, que ocorreu o inusitado encontro de agendas e egos impossíveis. A pressão se dava pelo fato de que só teriam aquela noite para fazer a gravação. Em um corte, vemos um instante de análise e planejamento, em que o produtor e Lionel Richie tentam criar um equilíbrio no contraste dos solos, em meio a tantas vozes marcantes.


O registro antológico do encontro de todas aquelas personalidades se sobressai à obra. Algumas cenas são muito curiosas, como o momento em que Al Jarreau homenageia Harry Belafonte, e é seguido pelos outros astros. Ou, ainda, uma hora em que todos começam a trocar autógrafos. Em um rápido ensaio no intervalo das gravações, Stevie Wonder toca piano enquanto as vozes começam a se afinar para as partes específicas individuais.


Em outro fragmento, durante a gravação do refrão, quando todos estão reunidos no estúdio, nota-se a expressão de tensão de Bob Dylan,que parece não entender muito bem seu lugar naquele espaço rodeado de timbres com alcances estratosféricos. Na sua vez de gravar, ainda perdido com relação ao papel que teria na música, ele ensaia com Stevie Wonder, que o ajuda a colocar seu tom ao fazer uma imitação de sua voz – uma cena genial. E após uma longa madrugada, com a gravação praticamente finalizada, a câmera flagra Diana Ross chorando, por não querer que aquela noite terminasse.


Há que se destacar um ponto, e certamente não se trata de saudosismo, mas é impressionante como o topo da cadeia alimentar do pop internacional tinha tanta autenticidade naquela época. Cada voz única, extremamente característica e inconfundível. De certa forma, fazer um paralelo com os artistas de hoje seria impossível. Por curiosidade, olhei outro dia a lista dos 50 artistas mais tocados na Billboard e no Spotify e me assustei. Eu não conhecia nenhum, nem a voz, nem a música. Se resolvessem fazer alguma produção com todos esses artistas juntos,eu fatalmente estaria tão perdido quanto


Dylan na gravação de We Are the World.


A comparação é injusta por vários fatores, eu sei. Devemos contextualizar que a evolução das ferramentas de gravação, em paralelo à possibilidade de segmentação e distribuição mais fluidas, provocou uma questão contraditória: artistas e famosos que ninguém conhece. Pode soar um contrassenso, mas é uma reflexão que me apareceu após assistir ao documentário. Note a quantidade de cantores, influenciadores e artistas de todas as vertentes, com milhares de seguidores em redes sociais, mas de que nunca se ouviu falar. Esse processo é interessante pois, com a quebra da hegemonia de grandes gravadoras e a dispersão do público por entre mídias distintas, o consumo cultural se tornou um processo cada vez mais fragmentado.


Devemos pensar que há um lado bom, isto é, este é um momento em que os meios podem estruturar uma certa fatia de público para quase todo tipo de artista. Mas, por outro lado, nunca mais teremos ícones pop como os que aparecem no documentário. E esse processo é irreversível. Não que precisemos de ídolos hoje, mas é evidente que o conceito de referência ou unanimidade se tornou impossível. Resolvi escutar outro dia uma indicação de artistas novos no Spotify. Notei que as músicas foram tocadas milhares de vezes, no entanto, não aguentei escutar nenhuma até o final. Talvez, não fosse para mim. Voltei ao meu setlist com músicas de artistas de 40 ou 50 anos atrás. Afinal, a música é, justamente, a possibilidade de acessar e sentir a expressão sonora condensada a uma temporalidade inacessível. É tocar o tempo. Boa semana!


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