Para Milton e McCartney

Matheus Tagé. Fotojornalista e doutor em Comunicação

Por: Matheus Tagé  -  25/12/23  -  06:37
Ídolos da música se presentearam em encontro histórico
Ídolos da música se presentearam em encontro histórico   Foto: Divulgação/Instagram

Chegamos na fila do Allianz Parque às 16h30 naquele sábado. Ao saltar do ônibus de excursão, minha esposa comprou uma faixa da Got Back Tour 2023 com o primeiro vendedor que apareceu. Não andamos nem dois metros, e ela logo garantiu a lembrança, e me disse que não era necessário esperar para comprar depois o mesmo produto: para adiantar, resolveu levar logo de cara.


Embora estivéssemos relativamente próximos do portão C, a fila estava dando uma volta de três quadras até retornar pelo outro lado da rua, para então acessar as grades de isolamento que afunilavam a entrada do estádio. Eu olhava o portão de acesso e pensava o quão distante estava dele, já que teria que enfrentar aquela multidão. Não era de hoje que desejava assistir ao show do Paul McCartney e, certamente, valeria a pena encarar a espera.


Na primeira meia hora de fila, eu observava os personagens à minha volta: uns com camisetas dos Beatles, do Wings e de outras fases da carreira, alguns fantasiados com roupas ao estilo Sgt. Pepper’s. Fãs de todas as idades. No entorno, um homem se gabava de ter todos os discos da carreira solo. À minha frente, uma senhora ostentava orgulhosa ingressos de passagens anteriores de McCartney pelo Brasil. É interessante observar a relevância cultural de um artista que está há sessenta anos no auge – certamente, o maior em atividade.


Quando chegamos perto de uma hora de espera, a fila começou a andar mais rápido; aceleramos e demos a volta em uma primeira quadra, e então, paramos novamente antes de atravessar uma rua. Ficamos estagnados em frente a um restaurante, onde um grupo de pagode tocava totalmente desafinado. Um irônico contraste com o que esperávamos assistir no palco principal. Respiro fundo. Demoramos mais uns quarenta minutos para chegar ao portão C, até, finalmente, conseguirmos entrar.


O show começou com o impacto, quase concreto, daquele acorde de Sol com quarta, da introdução de A Hard Day’s Night. O estádio inteiro ficou em suspensão. É impossível olhar para qualquer outro ponto que não seja o palco. O processo hipnótico começava, e Paul tocava seu velho baixo Hofner, o modelo clássico dos anos sessenta. Embora estivesse em uma área com cadeiras, não havia a menor possibilidade de ficar sentado, aliás, ninguém em volta estava. Até que notei um casal atrás de mim. Uma moça dançava e cantava, e um rapaz permanecia sentado mexendo no celular – por incrível que pareça, ele estava entretido, de forma que a presença de um ex-Beatle tocando ao vivo lhe parecia secundária.


Na sequência fantástica do repertório, a belíssima Maybe I’m Amazed, Paul mostrou uma agilidade inusitada para um octogenário e subiu correndo os degraus de uma escada até o piano, tocou e cantou sem economizar nos agudos. Depois, voltou ao violão com In Spite of all the Danger, Blackbird e Here Today. Com uma guitarra Les Paul colorida em mãos, tocou Let Me Roll It e, de quebra, um improviso instrumental em Foxy Lady, de Jimi Hendrix. Ao subir novamente a escadaria, para tocar piano em Live and let die, as explosões luminosas e pirotecnias tornaram evidente a proporção de espetáculo. Claro que não poderia esquecer Something, Hey Jude, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Helter Skelter, I’ve Got a Feeling (um místico dueto virtual com Lennon), e sua mensagem derradeira com Golden Slumbers, Carry That Weight e The End.


Ao final, observei um detalhe: na verdade, o rapaz, atento ao celular, estava transmitindo o show e falando com alguém distante. De fato, durante a apresentação, não existia nada além da música. A mistura de emoções e memórias amplifica a experiência de vivenciar Paul McCartney ao vivo, um amálgama de temporalidades. Em meio à impressionante atmosfera, as canções nos fazem lembrar de todas as histórias, os personagens, e os caminhos que nos levaram ao agora. De saída, uma fila gigante nos stands de souvenirs: ainda bem que havíamos comprado antes.


Dias depois, faltava escolher uma fotografia que pudesse representar essa turnê e que materializasse simbolicamente a passagem do ex-Beatle pelo Brasil. Então, vi a foto de Milton Nascimento e Paul McCartney, juntos, no backstage do Mineirão, em Belo Horizonte. Dois poetas imortais, duas histórias, dois mundos. E para esta imagem, creio que já não cabe analisar absolutamente nada, apenas entender o peso histórico dessa extraordinária confluência cósmica.


Espero que Paul tenha escutado a canção Para Lennon e McCartney, lançada em 1970, por Milton. Aos amigos leitores, desejo que no próximo ano possamos levar ao pé da letra seus versos: “Não precisam mais temer/Não precisam da Solidão/Todo dia é dia de viver”. Bom Natal, ótimo 2024, e uma boa semana!


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