É tempo de brincar

A inocência de uma criança diante de um trânsito intenso na companhia do pai desperta atenção

Por: Matheus Tagé  -  04/03/24  -  06:34
  Foto: Matheus Tagé/AT

O trânsito corria tenso pela cidade. Era uma tarde qualquer, de um dia qualquer, e o fluxo de veículos cortava as linhas acinzentadas de asfalto quente, em pleno calor de fevereiro. De um lado, uma obra em um cruzamento de avenidas dificultava a passagem, ao afunilar as vias; de outro, alguns carros estacionados em fila dupla pioravam ainda mais a situação. Com a rua parada, e uma fileira de automóveis, restava aos motociclistas o risco de ultrapassagens ousadas, rasgando em alta velocidade o pequeno espaço entre retrovisores e veículos mal posicionados. A ambiência suja, de rua, carros, ônibus, motos e poeira, emoldurava uma realidade que parece ter mais coisas do que gente.


Próximo ao cruzamento, um homem de boné verde e chinelos segurava um pacote de paçocas. Prevendo a lentidão do movimento de veículos, passava pelo meio da rua, oferecendo o produto aos motoristas. Ao seu lado, uma menina de cerca de 10 anos, que parecia ser sua filha, o acompanhava de mãos dadas, carregando um ursinho de pelúcia. Juntos, caminhavam a distância de uma quadra, o que dava tempo de abordar os veículos parados no trânsito, de modo que, ao terminar o trajeto, voltavam andando pela calçada. Nesse processo, dava o tempo exato de aguardar o trânsito andar um pouco e, assim, ao retornarem ao cruzamento de origem, podiam reiniciar a abordagem com outros veículos que se aproximavam.


Entre uma leva de carros e outra, a menina aproveitava o tempo na calçada para correr e brincar com o ursinho. A garotinha jogava o bichinho de pelúcia para cima e pulava para pegá-lo; uma brincadeira um tanto arriscada, visto que a calçada era toda desnivelada. O pai contava o dinheiro e organizava a embalagem de paçocas para a próxima incursão no trânsito, quando a menina parou e lhe pediu uma. Apesar da simplicidade, o homem era generoso: para ver a menina contente, deu logo um monte de paçocas nas mãozinhas da filha. Sorridente, ela comemorava tal qual toda criança costuma fazer, ao visitar o trabalho dos pais.


Durante a efusiva comemoração, a menina ia jogar o urso para cima novamente, mas tropeçou em um buraco na calçada, e acabou arremessando o brinquedo e algumas paçocas em direção à rua. O pai lhe ajudou a se levantar e recolheu os doces que restaram na calçada. A menina chorava, pois não conseguia encontrar o ursinho. Foi nessa hora que o trânsito começou a andar novamente. O urso havia caído no meio da rua e os pneus passavam quase colados ao lado de seu rosto inexpressivo – uma face que, na perspectiva da menina, devia expressar alguma forma de medo ou horror. Apesar dos carros passarem lentamente, devido ao trânsito, as motos voavam pelo vão da avenida. Se o lugar já parecia perigoso para um ursinho de pelúcia, imagine para uma criança.


De repente, a menina resolveu tentar o resgate. Ela correu em direção ao brinquedo, passando por entre alguns carros e um caminhão. Um motoqueiro passou rente ao urso, sem ver a ação da menina. Ao raspar com as rodas no brinquedo, o ursinho voou para mais longe: agora, para baixo de um ônibus. O pai ficou desesperado e saiu correndo em meio aos veículos, para conter a menina. Na pressa, jogou a embalagem de paçoca no chão da calçada. Um ciclista observou o apelo do homem e, ao se aproximar, segurou a menina enquanto o trânsito seguia.


Logo o pai chegou e a pegou no colo. Enquanto chorava, ela apontava para debaixo do ônibus, onde o ursinho caíra, e pedia que alguém o salvasse. O homem gritou ao motorista, para que esperasse um pouco, e assim, pudesse retirar o urso. Porém, com todo aquele barulho ensurdecedor de carros e buzinas, o motorista não escutou e seguiu em frente.


Após passar com as rodas do veículo por cima do brinquedo, finalmente o ursinho se revelava despedaçado. A menina chorava ainda mais triste, ao ver seu brinquedo estraçalhado no chão. O homem recolhia os pedaços de pano e algodão que o preenchiam, na tentativa de, talvez, recuperar a pelúcia, ao costurar novamente.


Ele seguiu, então, rumo à calçada, com a menina chorando em um braço e o urso despedaçado no outro. Era um dia perdido de trabalho. Por pouco, a tragédia não teria sido ainda pior. Enquanto o homem recolhia as paçocas e conversava com a menina, para que se acalmasse, uma senhora o abordou e propôs comprar a caixa de paçocas inteira. O homem sorriu aliviado e aceitou a oferta. Depois de tantas emoções, poderia encerrar o duro expediente. Agora, podia dedicar atenção à menina. Era tempo de brincar. Boa semana!


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