Crônica de uma tragédia anunciada

Apesar do tom jocoso, ninguém apostaria na queda do time do Rei Pelé

Por: Matheus Tagé  -  11/12/23  -  06:27
  Foto: Alexsander Ferraz/AT

Uma manhã de quinta-feira com gosto de ressaca até mesmo para quem não torce para o Santos Futebol Clube, mas, de alguma forma, gosta da história do time. A noite da última rodada do Campeonato Brasileiro foi alucinante. Nas redes, memes eram disparados incessantemente. Brincadeiras e piadas com os três times, que lutavam desesperados pela sobrevivência, ecoavam por grupos de WhatsApp e nas rodas de conversa. Apesar do tom jocoso, ninguém apostaria na queda do time do Rei Pelé. Estavam todos à espera de um milagre de última hora que resolvesse tudo. Daquelas coisas que só acontecem no futebol ou no realismo fantástico. Mas não foi desta vez.


Na madrugada e no dia seguinte, a destruição de carros, ônibus, e invasão do estádio: o saldo da parte intolerante – e inaceitável – do futebol. Nas bancas de jornais, capas ilustravam a tragédia, e me chamou a atenção a imagem do amigo Alexsander Ferraz, na primeira página de A Tribuna. Apesar de todas as crises e problemas a que já vimos o time passar na cobertura esportiva, nunca houve uma situação tão complicada como esta.


Na imagem, os elementos narrativos convergem para traduzir o que em palavras, talvez, nenhum torcedor fanático consiga explicar. A expressão de tristeza, dor e impotência de um homem que enxuga as lágrimas com uma bandeira do time. No detalhe da imagem, no braço esquerdo do uniforme que veste, observamos a presença das estrelas que evocam as glórias de um passado longínquo – ilusão fugaz para quem viveu aquela noite de quarta-feira.


O recorte melancólico remete à capa do Jornal da Tarde, no contexto da derrota brasileira na Copa de 1982, para a Itália. À época, o registro do fotógrafo Reginaldo Manente construiu um imaginário de comoção acerca de um time extremamente talentoso que foi eliminado. Na fotografia, um menino vestindo uma camisa da seleção chorava a tragédia do Estádio Sarriá. Porém, apesar da abissal diferença técnica entre os dois times, o Santos Futebol Clube de hoje também provocou emoções intensas com seu rebaixamento.


O processo que a imagem do torcedor santista provoca é a quebra do paradigma da representação de magia eterna, um espírito que sempre rondou os espaços da Vila Belmiro – santistas ou não, todos sabem do que estou falando. Havia uma presença naquela arquitetura antiga, nos corredores, na camisa, na atmosfera do campo, na história e nas ruas do entorno. E o que a cena constrói é, justamente, a tradução da ruptura entre o sentido imaginado e o contexto real. O colapso de uma estrutura semântica que parecia inabalável.


A fotografia, enquanto técnica, não registra processos como o vídeo faz, no entanto, sua materialidade permite o acesso às camadas que transpassam seus fragmentos, descolados do tempo contínuo, para revelar o todo. Por trás do choro do torcedor, há uma sequência de erros que culminaram nessa derrota histórica. Uma campanha controversa. E aqui destaco a derrota por 7 x 1, contra o Internacional, no Beira-Rio – o que parecia um prenúncio do fracasso – e, em paralelo, a simbólica postura de arrogância de subir na bola na vitória sobre o Vasco, uma cena um tanto desrespeitosa no âmbito esportivo. Presenciamos, então, os deuses do futebol punindo com desastre. E ao que parece, o roteiro não poderia ser menos rodriguiano.


Nos acréscimos, ao final da partida, o goleiro que tantas vezes escutei a torcida chamar de ‘melhor do Brasil’, em um erro crasso, se distancia da área na tentativa de fazer pressão no adversário. No entanto, não contava com o contra-ataque do Fortaleza – nesse ponto, surgem nuances e contornos cruéis. Num espelhamento irônico do destino – que o futebol enquanto arte não explica, apenas mostra – coube ao algoz Lucero fazer o gol que Pelé não fez. E, justamente, contra o Santos.


Assim, a imagem estampada na capa do jornal representa um desfecho de uma série de problemáticas irreversíveis a que esta temporada submeteu os torcedores. Para Nelson Rodrigues, “no futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. Este é o sentido de uma tragédia anunciada que se presentifica no drama do torcedor santista.


A fotografia decodifica a progressão de complexidades que culminaram neste capítulo dantesco na trajetória do time. Poucas vezes uma imagem conseguiu alinhar, de forma tão expressiva, tantos conflitos e temporalidades. Há que se somar a esta equação imagética, a presença fantasmática de Pelé, que além de ser a figura máxima do Santos, e do futebol, também deu nome ao fatídico Campeonato Brasileiro em que a esquadra santista afundou para as profundezas da Série B. Nem na ficção poderíamos imaginar circunstâncias tão surreais. Aos amigos santistas, desejo sorte em 2024. Boa semana!


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