A Tribuna, 130 anos: um tributo à fotografia

Matheus Tagé destaca a importância do fotojornalismo no registro da notícia e da história

Por: Matheus Tagé  -  01/04/24  -  06:19
  Foto: Matheus Tagé

Um menino corre na areia molhada sob um cinzento céu de outono. O verão já foi embora, mas, alheio a qualquer questão meteorológica, o mar permanece – e o menino também. Nesse chão, ele deixa suas pegadas, como um sinal de que, em algum momento no tempo, aquela ação aconteceu. O rastro fixado na areia úmida é um vestígio, um índice, uma máscara mortuária que marca a paradoxal presença ausente de uma cena que se tornou passado.


Ao final, ele mergulha no mar e brinca, como se estivesse em casa – e de fato, ele está. O menino e a água são um só. Eles fluem, flutuam, submergem, circulam e dispersam. Os dois juntos, naquele instante, são o próprio tempo. E sua imagem é o registro perpétuo de algo que nunca mais poderá existir. Ao menos, não exatamente como naquele dia nublado. A partir do registro, entendemos mais do que a trama do personagem: compreendemos sua passagem pela história.


Assim é a imagem fotográfica. Nestes 130 anos de A Tribuna, o fotojornalismo – enquanto linguagem mediadora da realidade – foi protagonista do tempo e da história. Longe de ser um documento neutro e superficial, a fotografia criou novas formas de registrar a vida em sociedade. Das tragédias aos triunfos, das situações comuns do cotidiano aos momentos históricos. Todos registrados em imagens. Não fosse a técnica fotográfica e sua linguagem desenvolvida pelos profissionais de todas as épocas deste jornal, o leitor não teria a construção visual das representações dos fatos do noticiário.


Certa vez, quando ainda era estudante, vi no jornal uma interessante imagem do pôr do sol refletindo um amarelo alaranjado nos antigos trilhos de trem que cortavam a cidade, na Avenida Francisco Glicério. Um passado acessível apenas na memória. Desde então, passei a me interessar pelas possibilidades limítrofes da fotografia. Entendi que a câmera enxerga de forma diferente o que o olho apenas vê. Para conseguir construir novas visões da realidade, seria necessário compreender o dispositivo como aparato mediador entre o real e o imaginário. Era preciso decifrar suas camadas e suas regras. E aí se encontra o lado interessante da fotografia. Ela permite conceber de forma diferente a realidade.


A partir da prática cotidiana do fotojornalismo, observamos a construção de um imaginário aprofundado sobre os fatos da região. Personagens, contextos, tramas. Isso sem falar nos elementos dramáticos que cada época da história nos trouxe. As imagens captadas pelos repórteres-fotográficos de A Tribuna, e reproduzidas nas páginas do jornal ao longo desde último século, são aliadas inestimáveis na pesquisa antropológica, enquanto ferramenta para compreender o tempo e o desenvolvimento sociocultural desse microcosmo caiçara ao qual todos pertencemos.


A familiaridade e o estranhamento diante das imagens mostram, de certa forma, um olhar do próprio tempo histórico sobre o objeto fotografado, algo incapaz de ser traduzido em palavras ou legendas – mas que, ironicamente, tento abarcar neste texto. Tomamos, fundamentalmente, as imagens como medida para o mundo. A fotografia revela, em suas nuances mais detalhadas, uma percepção de aspectos emocionais, subjetivos e sensíveis, algo que uma análise objetiva não conseguiria materializar. Conhecemos esta peculiar região em que vivemos a partir da visão estética de arquitetos do realismo fantástico, prontos para transpor obstáculos culturais e físicos de toda ordem, em busca de uma perspectiva barthesiana (Roland Barthes, filósofo francês) do mundo. Fotojornalistas são incansáveis caçadores de punctum (o ‘ponto cego’ da fotografia) – esta é sua função.


Ainda que pautados por um rígido código de ética, esses profissionais enxergam o mundo, invariavelmente, livre das amarras da imparcialidade ingênua. A arte, o cinema, a literatura – e a própria criatividade, é claro – são repertório em sua busca por traduções poéticas de um mundo em ebulição. Perceber o fato na imagem é a forma mais direta de entender a realidade do referente. Após quase 200 anos da criação do processo fotográfico, é importante entender o quanto esta técnica rompeu com a perspectiva e experiência histórica humanas. A fotografia é testemunha ocular, tal qual conceituou o historiador Peter Burke: uma metamorfose da concretude do real para uma materialidade abstrata, na dimensão da imagem.


De todas as notícias e momentos que foram registrados em imagens, observemos que o mais importante não é apenas o tempo na fotografia que vemos, mas, sim, o momento em que, por algum motivo, em meio ao calor da hora, alguém escolheu disparar o obturador e recortar para sempre um fragmento de tempo de algo vivido. Tal qual o menino na praia que corre para o mar, a imagem é resultado de um fluxo de escolhas, pautadas através de um referencial, que, por instinto, obriga o fotógrafo a traduzir os acontecimentos o tempo todo. Os fatos e a história seguirão, a fotografia permanece. Boa semana!


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