O ato de mentira

Mentir pode ser um ato consciente ou inconsciente, verbal ou não verbal

Por: Marcia Atik  -  04/04/24  -  13:57
Muitas das percepções que temos do outro e do mundo estão mascaradas
Muitas das percepções que temos do outro e do mundo estão mascaradas   Foto: Imagem ilustrativa/Pixabay

Início de Abril, ou melhor, dia primeiro é tido como o dia da mentira. No Brasil, o primeiro de abril começou a ser difundido em Minas Gerais, onde circulou A Mentira, um periódico de vida efêmera, lançado em 1º de abril de 1828, com a notícia do falecimento de Dom Pedro I desmentida no dia seguinte. A Mentira saiu pela última vez em 14 de setembro de 1849, convocando todos os credores para um acerto de contas no dia 1º de abril do ano seguinte, dando como referência um local inexistente.


Mentir pode ser um ato consciente ou inconsciente, verbal ou não verbal, declarado ou não declarado. E, em cada circunstância, merece uma atenção, uma crítica e um olhar diferente.


A ideia de escrever sobre isso foi por causa dessa mensagem que eu recebi e que traduz um problema nessa época em que se exige sucesso, performance e aparência irretocável.


Márcia, estou namorando há 6 meses e, no namoro tudo funciona bem, mas ele tem um defeito que eu percebia e passava batido. Agora me incomoda, mente muito, em pequenas coisas, nada de importante, mas todo dia eu o pego em mentirinhas bobas, estou ficando decepcionada, e não sei o que faço, pois eu gosto dele.


Partindo do princípio de que até mesmo os vírus, organismos tão simples, têm estratégias para enganar os sistemas imunológicos, chega-se a conclusão que a natureza está repleta de enganos. As mentiras de um modo torto nos dão a ideia de força ao desenvolvimento emocional e social.


Muitas das percepções que temos do outro e do mundo estão mascaradas nas histórias que contamos e acreditamos. Os seres humanos são narradores compulsivos, e quem conta um conto...


Aprendemos desde cedo as vantagens da mentira. Ainda crianças, aprendemos a dizer que a mãe não está em casa, quando ela quer evitar atender ao telefone, a dor de barriga quando não quer ir à escola, mas enquanto crianças com personalidade em construção. Isso tudo faz parte, torna-se um problemão quando o adulto se segura apenas em suas mentiras, falo daquela mentira que alivia a ansiedade e acaba se tornando uma verdade absoluta para quem a diz.


E a seleção natural da raça tornou esse comportamento quase comum, mas não devemos nos enganar, pois o caminho do mentiroso contumaz é árduo. A pior mentira é a primeira e a sequência de mentiras para justificá-la faz com que se perca o rumo da verdadeira história e, muitas vezes, da nossa própria, acreditando ser o que não somos.


Mentirosos contumazes, de dinâmica psíquica rica em conflitos e complexos, representam personagens tal como fazem os atores, e refletem aquilo que gostariam de ser. Ao perder o controle sobre o impulso de mentir, o personagem criado suplanta o ego e toda a personalidade é tomada por um falso e artificial ego.


Personalidades problemáticas relacionadas à mentira existem. A mentira desempenha papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura.


É muito comum vermos, na intimidade do consultório, muitas pessoas com dores d’alma por não estarem vivendo ou fazendo aquilo que lhes dá verdadeiramente prazer. Quer na vida pessoal, profissional e até mesmo na amorosa, chega um momento em que, ao perder o controle, deságua num comportamento transtornado para se ver livre das amarras que uma mentira aprisiona. Isso tudo dá muito trabalho tanto ao corpo como à psiché.


Nos relacionamentos, isso se torna mais grave ainda, pois se espera que, na intimidade de um casal, se extrapole os corpos nus e que a sinceridade o ser inteiro se apresente. Pessoas que mentem contumazmente não inspiram confiança e se tornam muito desagradáveis pois as mentiras acabam ficando evidentes e isso os torna vulneráveis.


O mentiroso geralmente é uma pessoa que tem baixa autoestima e mente para se ver de maneira superior ao que realmente sente isso pode ocorrer por uma tradição familiar de se colocar de maneira inferior, achar que os outros são sempre mais merecedores.


Mas também sabemos que pessoas que se acostumam com as pequenas mentiras podem, sim, utilizar grandes mentiras para persuadir, manipular ou controlar os outros.


Quando se quer bem a um mentiroso(a), é quase natural se tornar cúmplice da fraqueza ou co-dependente da doença do outro, perceber o limite para não se perder no labirinto do outro, pois uma coisa é o sentimento de inferioridade do mentiroso, outra coisa são seus projetos e sua vida.


A grande perda que a mentira pode provocar é a de falsear a vida, em busca da ilusão de ser perfeito, e consequentemente aceito, não deixando espaço para admitir a própria maneira de ver, sentir, reagir, na verdade uma grande prisão.


Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
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