O primeiro dia de nossas vidas sem as gloriosas rádios AM

Uma canetada e pronto. Lá se vai todo um passado, um sem fim de histórias, dramas, sucessos, bordões, personagens

Por: Julinho Bittencourt  -  03/01/24  -  06:23
  Foto: Pixabay

Os projetos de lei, decretos, medidas provisórias e demais instrumentos legislativos são frios. Uma canetada e pronto. Lá se vai todo um passado, um sem fim de histórias, dramas, sucessos, bordões, personagens, enfim, lá se vai um país e entra outro no lugar. E assim já é, desde segunda-feira, quando as rádios AM perderam a autorização para transmitir em todo o território nacional.


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Entrou em vigor o Projeto de Lei (PL) 7/2023, aprovado pelo Senado em 12 de dezembro e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Todas as emissoras foram obrigadas a migrar da antiga amplitude média para a frequência modulada, as FMs. O PL coloca fim àquela chiadeira interminável que tanta saudade nos deixa para um som limpinho, em estéreo.


Nós que somos jovens há mais tempo, no entanto, temos a obrigação de lembrar que as velhas AMs já tiveram seus dias de glória, com audiências devastadoras em todos os rincões do País. Elas chegavam em locais onde nenhum outro meio de comunicação alcançava. Estavam com o pescador dentro de um barquinho, com o porteiro do prédio, com o vovô no portão, a dona de casa na cozinha, entre outros tantos trabalhadores solitários.


Em dias de futebol então, não tinha pra ninguém. Em uma época em que muito poucos jogos eram televisionados e quase ninguém tinha aparelhos de televisão, eram elas que nos contavam sobre os gols do Garrincha, as jogadas de Pelé, Leônidas da Silva. Isso tudo sempre com uma certa dose de exagero, pois ninguém estava vendo, não é mesmo?


As antigas AMs nos contavam também sobre os grandes fatos da política, o suicídio de Getulio Vargas, os sucessivos golpes militares e, sobretudo, os resultados das eleições. Até meados da década de 1980 – e dá pra arriscar que até a chegada da internet e os smartphones – não havia maneira mais eficaz e rápida de acompanhar seu voto do que nelas, as velhas AM.


Isso tudo sem contar a música, os programas caipiras logo cedinho, as paradas de sucesso. Tínhamos também as cantoras do rádio, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e a sua constelação de astros que divulgou para o País artistas maravilhosos como Orlando Silva, Francisco Alves, Silvio Caldas, Aracy de Almeida e os sambas de Noel e, posteriormente, a bossa nova. A Jovem Guarda e a Tropicália que, apesar de já serem fenômenos da TV, disputavam as paradas e eram ouvidos mesmo nos radinhos de pilha Brasil afora.


As AMs acabaram, enfim, sem ninguém perceber. Mas cumpriram um papel grandioso e é bom que isso fique registrado. Elas eram e sempre serão o som daquelas tardes ensolaradas dos domingos de futebol.


Nunca vou esquecer da primeira vez que entrei na velha e mítica Rádio Eldorado de São Paulo e vi ao vivo o operador disparar a vinheta: “Com notícias fornecidas pelos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, a Pirelli informa...”.


Meu primeiro emprego como estagiário de jornalismo foi na Rádio Cultura de Santos AM, com certo orgulho. As FMs na época eram vitrolões, como os jornalistas pejorativamente chamavam. As notícias, denúncias e reportagens mesmo rolavam nas AMs. O prestígio dos locutores de rádio era enorme. Certa vez, fomos parados em uma blitz pouco antes da descida da Via Anchieta. Eu e dois locutores. Um deles desceu do carro e, após alguma conversa, disse que fazia o jornal da hora do almoço da emissora. O policial exclamou, espantado: “Qual dos dois você é?”. Ele se identificou e, imediatamente, o outro saiu do carro e falou, com sua voz de trovão: “E eu sou o outro”.


Autógrafos, abraços e sorrisos depois, seguimos Serra abaixo. No dia seguinte, é claro, os policiais ganharam abraços no jornal – em ondas médias.


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