Lugar feliz a qualquer tempo

Quando algo bom se quebra, o modo como foi moldado não deixa de importar

Por: Fernanda Lopes  -  30/12/23  -  11:03
  Foto: Unsplash

E lá se foram mais 365 dias. O tempo podia ser como caramelo, além de doce, esticar a cada puxada. Mas não, ele é firme, apesar de relativo, como diz a física teórica e a prática. Afinal, quem não sabe que ele passa rápido quando a gente se diverte e se arrasta quando precisamos que vá depressa? Coloque o leite para ferver e aguarde. Vai levar uma eternidade para esquentar, mas basta virar um segundinho e ele derrama da leiteira, sujando todo fogão.


Quantas lambanças dessas não fazemos o ano todo em uma distração inocente? Deve ter sido assim que Einstein descobriu a relatividade. Já contei que sou a rainha absoluta de queimar arroz? De tão fácil de fazer, acho que subestimo o preparo ou negligencio o fator “fica pronto rapidinho, não vai tomar banho ou mandar um e-mail porque vai dar ruim”. É outra prova de que o tempo é mesmo cheio de pegadinhas.


E quanto mais velha a gente vai ficando, mais parece que tudo passa rápido. Como se a gente o enxergasse pela janela de um trem-bala. Nem dá para apreciar o que está na nossa frente.


Quando somos criança, queremos ser adulto e parece que nunca chega. Na adolescência, o desejo é ter idade para dirigir, beber, sair sozinho... E como demora. Quando finalmente tudo isso acontece, a vontade é fazer o relógio andar para trás. Mas daí a física é contra. Não encontrou um jeitinho de isso acontecer (ainda). Quem sabe, um dia, daqui um tempo, alcancemos essa proeza.


Dois mil e vinte quatro vai ser ano bissexto, ou seja, teremos mais um dia para correr atrás de pagar contas, e, claro, para gastar e, então, juntar mais contas. E também mais tempo para descansar de gastar e de pagar.No fim, a vida é isso. Um grande boleto. Um círculo vicioso e viciante. Até mesmo sentados no sofá assistindo aos mil e um streamings disponíveis estamos girando nesse looping infinito. Não é reclamação, só reflexão.


Gosto de pensar que, antes do amanhã, nós temos o agora e ele merece total atenção. Nada de deixar passar despercebido, como se só o que está por vir tenha valor. Envelhecemos mais rápido se nossa cabeça já está lá na frente. E a gente merece esse hoje inteiro. Estamos no dia 30, ainda faltam 48 horas para o ano que vem. E estou atenta a viver esses dois dias plenamente.


Um livro que li este ano, chamado Lugar Feliz, propôs um exercício interessante e que tenho feito: quando precisar de conforto, pense no seu lugar feliz. Ele pode ser sua casa, uma rua, uma cidade, uma praia, uma pessoa, uma família, um trabalho e até um momento. Pode ser você. Podem ser vários, uma coleção de lugares felizes. Porque não?


Pode ser até o leite derramado ou o arroz queimado, que já viraram uma espécie de ritual divertido e que ensinam a rir de si mesma a qualquer tempo.


À medida em que tenho ‘encontrado’ meus lugares felizes, venho descortinando o que de verdade me deixa viva. E não pense que eles são óbvios nem que são complicados ou raros. Eles estão,principalmente,naquela categoria do tempo relativo, que nunca parece suficiente,porque voa pela janela do trem. Mas eu paro em cada estação, mesmo que num pulo, e catalogo. Vou prestando cada vez mais atenção em cada parada e tentando absorver tudo dela para ficar arquivado e ser resgatado sempre que eu precisar do meu lugar feliz: aromas, brisa, tato, sons, imagens, sensações... Quando eu precisar da onda de dopamina que tudo isso traz, vou lá buscar nos meus arquivos todas essas memórias e logo tudo fica melhor.


E nessas gavetas de experiências estão também as que começaram boas e terminaram tristes. Quando algo bom se quebra,o modo como foi moldado não deixa de importar. Tal qual aquela arte japonesa emendar japonesa de emendar cerâmicas quebradas com pó de ouro.


Mesmo o danificado pode ser recuperado e até melhorado nessa nossa coleção de sapiências que ensina e pode, quando precisamos,nos resgatar.


Que 2024 seja repleto de lugares felizes! Até ano que vem!


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