Fernanda Lopes: Verdades provisórias

Outro dia recebi um post que colocava ladeira abaixo os estudos que elevam uma taça de vinho a um elixir saudável

Por: Fernanda Lopes  -  09/03/24  -  06:42
  Foto: Adobe Stock

Outro dia recebi do meu amigo Paju (cuja certidão insiste em dizer que se chama Paulo Nélson) um post que colocava ladeira abaixo os estudos que elevam uma taça de vinho a um elixir saudável. Pois parece que algum estraga-prazer destronou a bebida como aliada do bom funcionamento do coração e ainda teria concluído que, na verdade, ela faz mal, mesmo sendo uma dose por dia.


A tal pesquisa ganhou matéria no New York Times, assim como estudos anteriores que consagravam o vinho. A vida é cheia de altos e baixos, não é mesmo? Sempre me fascinou o chamado Paradoxo Francês. Só o nome já é bonito e parece irrevogável. A expressão é utilizada para se referir à aparente contradição existente entre a alimentação dos franceses e sua saúde. Samuel Black, em 1819, reparou que os franceses, apesar de se empanturrarem de gorduras saturadas (leia-se os irresistíveis queijos, patês ou manteigas) sofriam menos de aterosclerose coronária do que pessoas de outros países desenvolvidos. Percebeu-se que, ao ingerirem essa quantidade maior de gorduras, ela sempre estava acompanhada de vinho, o que seria a chave para essa proteção.


Em 1991, um estudo publicado no British Medical Journal ressuscitou e corroborou essa percepção. Feito por pesquisadores da Universidade de Bordeaux, na França, com mais de 35 mil homens franceses, o trabalho mostrou que, mesmo se entupindo das delícias típicas da França, eles tinham bem menos problemas nas coronárias.


A divulgação do Paradoxo Francês nos Estados Unidos, no programa 60 Minutes, da rede de TV CBS, em 1991, foi um estrondo. Esse programa teve uma repercussão gigantesca (que continua até os dias de hoje), tanto na mídia leiga como na científica, e alavancou o vinho no intitulado Novo Mundo – Estados Unidos, principalmente.


Disso, vieram muitos estudos sobre centenas de antioxidantes presentes nas uvas, que seriam mantidos na fermentação. E tudo casava perfeitamente com a maravilha que é curtir uns bons goles de vinho.


Mas, como inegavelmente a tecnologia evoluiu na velocidade da luz de lá para cá, é preciso, sim, que revisemos muitos dos nossos estudos e pesquisas científicas. Até porque a nossa alimentação mudou demais também. Os ultraprocessados dominaram prateleiras, nossas casas e nossos corpos. E daí, leigamente arrisco, não há vinho que faça milagres.


No post que recebi com a pesquisa estraga-prazer, o autor usa um termo muito interessante: verdades provisórias. Na alimentação, talvez o maior exemplo de vítima desse termo foi o ovo. Ele era o vilão. Sua gema acusada de aumentar o colesterol era tirada das dietas ‘saudáveis’. Hoje, o ovo está em todas as listas de bons ingredientes (amém a isso!). Virou queridinho das nutris, das fits, dos marombados...


Para mim, verdade provisória é que nem horóscopo do dia, eu acredito só quando é bom. Me permito o direito de ignorar esta última sobre o vinho. Está aí uma indulgência de que prefiro não abrir mão. O mesmo com o café. Não dá para ficar sem. Hoje, a bebida cujo aroma consegue ser ainda melhor que o sabor, e é a mais consumida no Brasil, está sendo desvilanizada e bem mais aceita nos consultórios médicos. Pessoalmente, não consigo funcionar se não tomar uma xícara de café quando acordo. Faz parte do processo do download da alma pelo corpo.


Sabe outra vítima das verdades provisórias? O chocolate. Não aquele cheio de açúcar e gordura. Este ainda não foi resgatado. Mas o com bastante cacau passou por uma redenção nos últimos anos e foi alçado a posto de benéfico ao organismo, depois de anos banido. Claro, com moderação.


Aliás, moderação talvez seja a palavra mágica em quase tudo nessa vida, assim como o termo provisório. Afinal, de absoluto só mesmo que nada é definitivo, nem mesmo a revisão do meu suposto alvará para minha taça sem culpa. Por essas e outras, saúde!


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