Fernanda Lopes: Em obras

Há ocasiões em que não sou eu a ir atrás do assunto. É ele que me atinge, persegue e insiste em se tornar o foco

Por: Fernanda Lopes  -  23/03/24  -  06:47
  Foto: Matheus Tagé/AT

Neste espaço, escrevo sobre a vida cotidiana. Acho que essa deve até ser a essência da palavra crônica. Vez ou outra, trago temas que as pessoas não têm tempo de reparar, de tão corriqueiros passam despercebidos.


Também, vira e mexe, sou arrebatada pela minha tendência nostálgica, que me transporta a outros tempos por uma foto, um cheiro, um sabor... Vocês que me acompanham sabem que adoro uma visita ao passado.


Porém, há ocasiões em que não sou eu a ir atrás do assunto. É ele que me atinge, me persegue, insiste em se tornar o foco da minha semana. É esse o caso da crônica de hoje, cujo tema são obras. Não as sociais, ou religiosas. Estou falando daquelas que causam quebradeira, muito barulho e dor de cabeça. Não que seja fascinante, mas parece que todos só querem falar sobre isso.


Acho que o santista está naquele clima de reforma em casa. No começo é só empolgação e depois vem a vontade fugir para as montanhas. Até o mais zen dos seres humanos fica descompensado quando entra no modo obra.


Quem nunca reformou um cômodo talvez não saiba o que é esse sentimento dúbio de querer a melhoria, mas se arrepender na mesma proporção.


Há quanto tempo o VLT é um anseio popular? Desde que comecei no jornalismo, há três décadas, leio sobre isso. Já tinha virado uma lenda urbana quando saiu do papel e virou realidade. Agora, ele segue em suas novas etapas. É um projeto de fôlego, não há dúvida. Todos sabemos que será positivo, que facilitará a vida de muita gente, mas nem por isso deixamos de reclamar a cada rua que viramos e nos deparamos com uma placa de interdição. Não há GPS ou Waze sem estar enlouquecido nessa cidade. A tecnologia não consegue dar conta de atualizar onde está a escavação do momento.


A impressão é de que a tentação do ‘já que’ está dominando cada via. Já que vamos quebrar aqui porque não mudar ali? Já que vamos trocar essa calçada por que não mexer na outra? Tal qual acontece na nossa casa quando em reforma.


Provavelmente, são só aqueles serviços do dia a dia, que sempre foram feitos, mas somados aparecem mais. Esgoto, drenagem, manutenção de asfalto, de jardins, de praças, de ciclovias... Faz parte de se manter a cidade, assim como fazemos na nossa casa que, mesmo com reforma, continua tendo lâmpada queimando, vazamento aparecendo...


É difícil ser racional quando a gente se depara a cada esquina com uma rua fechada, um congestionamento ou um buraco. Isso sem falar de quem mora perto dessas obras e ainda precisa lidar com a terra entrando em casa, o barulho da retroescavadeira e todo combo que é o preço cobrado pela futura bonança.


Mesmo que seja óbvio que obras são necessárias e que tudo que temos de infraestrutura é resultado do que já foi uma dor de cabeça, a gente não quer ser razoável. Mesmo sabendo que tem muita gente empregada para esse quebra-quebra, é catártico ser passional e sair reclamando para quem quiser (ou não) ouvir. E, assim, já faz algumas semanas que esse assunto virou uma constante.


Pego o Uber e o motorista se queixa, afinal ele é um dos mais afetados. Vou no médico, e a conversa cai nas obras, que chegaram perto do consultório. No trabalho, lá vem elas de novo. Até o papo com os amigos no fim de semana desandou para isso.


Se a crônica é a narrativa da vida cotidiana, me pareceu quase obrigatório ser este o tema da minha coluna, mesmo que pareça tão pouco inspirador. Sabe o que é pior (ou melhor)? O pedreiro esteve na minha casa hoje, porque após muitos adiamentos vou reformar o apartamento. A temática me perseguiu e me alcançou. Então, é respirar fundo e mergulhar nessa empreitada que estressa e empolga ao mesmo tempo e mentalizar que no fim o perrengue vale a pena.


Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver mais deste colunista
Logo A Tribuna
Newsletter