Bolha pessoal

Gosto de ir ao cinema sozinha. É um passeio que não necessariamente precisa de companhia

Por: Fernanda Lopes  -  16/03/24  -  06:42
  Foto: Pixabay

Gosto de ir ao cinema sozinha. É um passeio que não necessariamente precisa de companhia. Ele exige silêncio, atenção. Fazia muito tempo que não me dava de presente um cineminha sem planejamento. Daqueles que a gente está passando na porta, com tempo, é seduzida pelo cartaz e entra.


Era sábado, mas não estava cheio. Escolhi minha fileira e sentei. Logo começou a ficar mais movimentado e um senhor sentou-se ao meu lado. Estou lá curtindo meu programa solitário, quando ele começa a puxar papo. Primeiro, falou do tamanho diminuto das salas atuais e lembrou dos tempos em que elas eram enormes, e mesmo assim, se fosse fim de semana ou férias, era capaz de ter público sentado nas escadarias e ainda muitos do lado de fora.


Sim, a facilidade de termos os lançamentos cinematográficos disponíveis na nossa casa afastou muita gente do cinema. Porém, mesmo concordando com o meu interlocutor não convidado, eu não estava no clima de conversa. Queria me afundar na minha pipoca com guaraná e esvaziar a mente, sem ter que elaborar nenhum raciocínio.


Eu que venho de uma família grande, com a casa sempre cheia, valorizo demais momentos silenciosos. Aliás, dificilmente se acha uma leitora compulsiva que não ame silêncio, cujo valor é subestimado.


Tem um livro de que gostei muito, chamado Loucos por Livros, da Emily Henry. Num trecho, ela fala que existe um tipo de quietude pacífica, que se dá com pessoas que nos conhecem tão bem que não precisam preencher o espaço. E também há um conceito de barulho que é o de celebração, como uma alegria transbordante por estar viva.


Essa linha do espaço pessoal é tênue e, invariavelmente, ignorada. Li uma reportagem de uma criança na Inglaterra que é portadora de uma síndrome rara, do cabelo impenteável, condição rara causada por uma mutação genética.


Fato é que a mãe da criança acha o mais complicado explicar para a filha o que é consentimento, já que muita gente toca nos seus fios sem pedir e sem nenhum constrangimento. E tenho certeza de que deve ser muito comum. Falta o chamado ‘simancol’, como dizia minha avó, em boa parte da humanidade.


Uma amiga, quando estava grávida, me falava da sensação desagradável que era todos passarem a mão na sua barriga sem perguntar antes. E que, mesmo perguntando, ela não se sentia confortável.


Este ultrapassar de barreiras, ainda que de forma não deliberada, transmite um sentimento de pretensa intimidade que excede limites. Que tal se todos pensassem que estamos dentro de uma bolha, como as de sabão? Uma redoma pessoal, um território que não deve ser estourado com toques ou conversas fiadas não solicitadas. Às vezes, a única coisa que a gente quer é aproveitar a nossa própria companhia.


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