100 anos da Previdência Social: conquistas e desafios

O princípio do sistema previdenciário está representado na Lei Eloy Chaves

Por: Sergio Pardal Freudenthal  -  04/12/23  -  06:24
  Foto: Vanessa Rodrigues/AT

Em 24 de janeiro deste histórico ano de 2023, no início da reconstrução do Estado Democrático de Direito, comemoramos 100 anos da Previdência Social em nossa legislação. O princípio de nosso sistema previdenciário está representado na Lei Eloy Chaves, que dispõe a criação das Caixas de Previdência nas empresas ferroviárias – conquista do movimento sindical brasileiro em suas origens; a sua expansão segue, crescendo sem controle, como cogumelos, alcançando a sua junção, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, em Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPM, do Marítimos; IAPC, dos Comerciários; IAPB, dos Bancários; IAPI, dos Industriários; o IAPETC, dos Empregados em Transportes e Cargas, inclusive os Estivadores; e o IPASE, de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, único que sobreviveu ao INPS, transformando-se em IPESP, e atualmente SPPREV.


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Em 1960, respondendo à mais que efetiva participação dos sindicatos, foi aprovada a LOPS, Lei Orgânica da Previdência Social, unificando a legislação previdenciária relativa a todos os IAPs. A fusão dos Institutos no INPS, Instituto Nacional de Previdência Social, que viria a se tornar o atual INSS, Instituto Nacional do Seguro Social, ocorreu em 1967, após a instalação da ditadura militar em 1964, sofrendo todas as intervenções próprias dos regimes de arbítrio. Com o domínio do sistema previdenciário, sem mais a participação e fiscalização dos sindicatos, a ditadura se aproveitou


do dinheiro das contribuições previdenciárias, especialmente em obras como a Ponte Rio-Niterói, a Binacional de Itaipú ou a ridícula Estrada Transamazônica. Para garantir as “sobras” financeiras, abusaram nas defasagens tanto nos cálculos para concessão de benefícios quanto em seus reajustes.


Em 1988, a Constituição Cidadã redemocratiza o país, rompendo com os arbítrios da ditadura que terminara em 1985. Entre outras conquistas, construiu a atual Seguridade Social brasileira, englobando a Previdência, mantendo seu caráter contributivo, e a Saúde e Assistência Social, sob responsabilidade do Estado. Além disso, recompôs a credibilidade do sistema previdenciário, definindo a média para o cálculo da aposentadoria e a obrigatória correção monetária em sua elaboração, enquanto normas de natureza constitucional. E ainda corrigiu a defasagem das aposentadorias e pensões na época.


A redação original do artigo 202 dispunha ser “assegurada aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o benefício sobre a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade dos reajustes dos salários de contribuição de modo a preservar seus valores reais (...)”.


E, apesar de toda a sanha neoliberal, especialmente a partir do Golpe de Estado de 2016, apelidado de Impeachment da Dilma, algumas garantias ainda estão mantidas no artigo 201, mesmo com novas redações (ao escrevinhador representam cláusulas pétreas, seriam imutáveis...). Continuam seguranças constitucionais: “todos os salários de contribuição considerados para o cálculo de benefício serão devidamente atualizados” e “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”.


Completando a recuperação da credibilidade do sistema previdenciário, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 58, estava a revisão das aposentadorias e pensões: “benefícios de prestação continuada mantidos pela previdência social na data da promulgação da Constituição, terão seus valores revistos, a fim de que seja restabelecido o poder aquisitivo, expresso em número de salários mínimos, que tinham na data de sua concessão”. Sendo norma transitória, esse foi o “critério de atualização até a implantação do plano de custeio e benefícios”.


Assim, de abril de 1989 até o final de 1991, os benefícios previdenciários foram revistos e pagos pelo número de Salários Mínimos representados na Renda Mensal Inicial.


Passados dez anos da promulgação da Constituição Cidadã, a partir da EC 20/1998, as alterações constitucionais começaram a comprometer a credibilidade do sistema previdenciário. Foi incluída a obrigação de observar “critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, dando maior importância ao tal controle atuarial, que nunca foi feito, do que às garantias de sobrevivência e dignidade para os trabalhadores.


Além de transformações na legislação previdenciária, reduzindo direitos e aumentando exigências, a tecnocracia prosseguiu com reformas constitucionais, como a EC 41/2003 e a famigerada EC 103/2019, radicalizando o neoliberalismo.


Apesar de trinta anos de políticas neoliberais destruindo conquistas, a pandemia demonstrou a força e a importância do INSS e do SUS, Sistema Único de Saúde, frutos da luta e inscritos na Carta Magna.


De qualquer forma, muitos malefícios foram causados pelas reformas neoliberais. Baseados nas mudanças conceituais, dando maior importância ao equilíbrio financeiro e atuarial do que ao


cumprimento das funções sociais, eliminaram a média do artigo 202 e a base de cálculo passou a ser cada vez pior para os trabalhadores.


Atingimos, com o Golpe de 2016 e o “desgoverno” de 2019 até 2022, a violência ultraneoliberal. A EC 103/2019 busca reduzir ainda mais a credibilidade do sistema previdenciário público, principalmente nos cálculos de aposentadorias e pensões. E, acreditem, no projeto apresentado as coisas eram ainda piores.


Desafios
Sobrevivemos, podendo comemorar os 100 anos que a Previdência Social completou na legislação brasileira, distinguindo avanços e recuos que representam lutas operárias e violências fascistas, como os Golpes de 1964 e de 2016. Agora, com o governo de reconstrução, precisamos colocar o debate na pauta; é preciso recompor o sistema previdenciário e recuperar sua credibilidade.


As políticas neoliberais golpearam o Direito Social em todo o mundo. A pandemia, e o consequente horror que vimos acontecer, desmascarou as vitrines neoliberais. O novo fascismo, aliado ao ultraneoliberalismo, pipocou em muitos países, inclusive no nosso, nos custando, entre outros absurdos, a EC 103/2019, que contém graves maldades. A proposta original pretendia privatizar, “chilenizar”, a nossa Previdência Social.


Nossos gigantes na luta contra a Covid19 foram o SUS e o INSS, criaturas da Constituição Cidadã, apesar do desgoverno de então. Agora, nos países civilizados, discute-se as contrarreformas no Direito Social, a recomposição das garantias trabalhistas e previdenciárias. São esses os desafios históricos.


Em nosso país, seria sonho a simples revogação das reformas decorrentes do Golpe, a trabalhista (2017) e a previdenciária (2019). Bastante improvável, também, ressuscitar a


aposentadoria por tempo de serviço ou a média dos três últimos anos de contribuição. Porém, existem recomposições, especialmente nos cálculos dos benefícios, que podem ser feitas e devem ser imediatas.


A EC 103/2019, em seu artigo 26, dispõe os tenebrosos cálculos dos benefícios, “até que lei discipline”. Trata-se de uma regra transitória, alterável através de lei ordinária, não sendo necessária emenda constitucional.


Alguma coisa está sendo feita, como a reestruturação da instituição previdenciária, mas muita coisa ainda terá que se fazer. A luta contra a miséria e a desigualdade também passa pelo contrato formal de trabalho, com as garantias previdenciárias. Será preciso, por exemplo, revisar as exigências para a aposentadoria especial dos que trabalham em condições insalubres, periculosas ou penosas, a partir de uma correta análise técnica das atuais condições de trabalho em nosso país. Porém, o retorno a cálculos de benefícios com alguma dignidade requer apenas alterações legislativas, mas com urgência.


Indubitavelmente, a maior perversidade da EC 103/2019 está nos cálculos dos benefícios. Podemos examiná-los em duas partes: a base de cálculo, que é a média das contribuições, e o percentual a ser aplicado.


As alterações da base de cálculo começaram com a Lei 9.876/1999, regulamentando a EC 20/1998. Ao invés dos 36 últimos salários, como dizia o texto original da Constituição Cidadã, a média passou a ser dos maiores salários que representassem 80% de todos, ou, pela regra de transição, desde julho de 1994. Quanto maior for o número de contribuições utilizadas para a média, pior fica para o trabalhador e melhor para o sistema. É a defesa do “equilíbrio financeiro e atuarial”. A base de cálculo passa a representar exatamente as contribuições do segurado e não as condições que


ele teria se estivesse em atividade. A EC 103/2019 apostou em maldade maior, determinando a média sobre todas as contribuições desde julho/1994, sem retirar os 20% nas contribuições menores.


Nem é o caso de pretender o retorno da média dos três últimos anos; nos tempos atuais, nem sempre são os melhores. Porém, é possível um cálculo mais favorável aos trabalhadores e ainda utilizando um tempo maior de contribuições, sem abandonar o “equilíbrio financeiro e atuarial”. Observado o maior período de carência (15 anos para aposentadoria por idade), bem que a média poderia ser feita pelas maiores 180 contribuições após julho de 1994; nem tanto ao mar, nem tanto à terra.


Nos percentuais aplicados nas aposentadorias e pensões, a maldade fica mais evidente. Desde 1995, qualquer aposentadoria por invalidez ou pensão por morte era calculada em 100% da base. A partir da EC 103/2019, todas as aposentadorias, até mesmo as por invalidez, passaram a ser calculadas em 60% da média para quem tiver até 20 anos de contribuição, somando-se 2% ao ano a partir do 21º ano.


E o cálculo da pensão por morte retrocedeu para os tempos da ditadura, em 50% da aposentadoria do segurado falecido, mais 10% para cada dependente.


Imagine-se o trabalhador que tinha quase 20 anos de contribuições (trabalho sem registro não vale), alcançando uma média de 5 mil reais. Faleceu, deixando apenas a esposa como dependente porque os filhos já estão criados. A base de cálculo será a aposentadoria por invalidez do segurado se, ao invés de morrer, ficasse inválido, ou seja, 60% da média, sendo a pensão, apenas para a viúva, em 60%. Com tal cômputo, resta para a viúva 36% da média de contribuições do falecido, a bagatela de 1.800 reais.


Difícil entender quais critérios inventaram os tecnocratas para tal forma de cálculo. Impossível que as contas da viúva diminuam tanto.


Vale lembrar que a Lei 8.213/1991, em sua redação original, determinava a aposentadoria por invalidez em 80% da média e a por idade em 70%, com o acréscimo, em ambas, de 1% para cada ano de contribuição, até o máximo de 100%. Bastante válido seria o retorno de tal cálculo.


E, para a pensão por morte, valeria a ideia inicial em 1991, com 70% da aposentadoria do falecido, acrescido de 10% para cada dependente, ou seja, no mínimo 80% e no máximo 100%.


No exemplo considerado, a base de cálculo, suposta aposentadoria por invalidez, com 19 anos de contribuição, seria em 99% da média, com a pensão por morte em 80%, alcançando então 3.960 reais. Bem mais justo.


Na Constituição Cidadã, em 1988, recuperar a credibilidade do sistema previdenciário, bastante abalada pela ditadura militar, foi o foco, com a criação de nossa Seguridade Social e a recomposição de valores dos benefícios. Após três décadas de políticas neoliberais, em especial com a violência máxima após o Golpe de 2016, será preciso novamente recuperar a credibilidade dos nossos sistemas de Previdência Social.


Desafio imediato será corrigir a lei previdenciária, apresentando cálculos mais justos para as aposentadorias e pensões, ressaltando que não se trata de matéria constitucional. Corrigidas tais perversidade, também será preciso recompor os benefícios dos que tiveram o azar de ter o início durante a vigência da maldade atual, desde a promulgação da EC 103, em 13/11/2019. Impossível recuperar o que deixaram de receber antes da nova lei, mas será importante garantir os valores futuros, devidamente


recalculados, a partir da sua vigência. Como diria Odorico Paraguaçu, o Bem-Amado, “pratrasmente” a lei não vale, mas “prafrentemente” tem que ser igual para todos.


A recuperação do Direito Social, tarefa do governo progressista, será instrumento importante para redução das desigualdades sociais. A garantia das contribuições do sistema previdenciário está nos contratos de trabalho formais; enquanto a tecnocracia neoliberal aposta no desmonte do Seguro Social, os democratas devem defender os mais necessitados, hipossuficientes, dependentes do efetivo Direito do Trabalho e da Seguridade Social.


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