Fora do prumo

O relógio da parede de casa anda dando trabalho

Por: Cassio Zanatta  -  11/04/24  -  06:23
  Foto: Imagem Ilustrativa/FreePik

O relógio da parede de casa anda dando trabalho. Tem mais de 100 anos, está claudicando. Não faz muito, ia para o conserto de cinco em cinco anos. Agora, esse tempo estreitou muito.


Está cada vez mais difícil achar seu prumo. Pendurado na parede reto, ereto, como o altivo americano de Connecticut que é, o pêndulo desiste de oscilar, o tique-taque se aquieta e as horas param (o que não é uma sensação de todo ruim). Agora, ele só funciona um pouco tombado para a direita, como se alguém ao espanar o pó da sala tivesse esbarrado nele, se esquecido de pô-lo de volta ao lugar e assim ele se acostumou.


(Se a gente for reparar, não é só esse relógio: quanta gente por aí anda meio fora do prumo.)


Um segundo antes das badaladas – que já foram mais vigorosas –, ele agora faz um barulhinho de motor se pondo em marcha com alguma dificuldade, como se as juntas lhe doessem. E sua madeira perdeu aquele viço de quando ele e eu éramos jovens, por mais que a gente lustre. De vez em quando ficamos assim, ele a contemplar minhas rugas, eu, suas ranhuras; eu, seu vidro já meio fosco, ele, meus cabelos embranquecidos.


Entre as coisas que ainda cabem exclusivamente a um homem fazer numa casa, como subir no telhado para consertar uma telha quebrada, rachar lenha ou carregar as malas mais pesadas, resta também dar corda no relógio de parede. Não quero encrenca com nenhuma feminista, é apenas uma constatação local, mas não me lembro de ter visto Beatriz dar corda nesse relógio (nem minha mãe, nem minha avó); tampouco acho que meus filhos suspeitem onde fica a borboleta para esse fim. Talvez o tempo afete mais os homens, vai saber. Eu, por exemplo, não posso ouvir um sino tocar que paro o que estiver fazendo para ouvir. Também me detenho com o som dos cascos de um cavalo puxando a carroça numa rua de paralelepípedos, mas esse é outro assunto.


Pensando bem, esse relógio é uma espécie de cronista da família: cada um conheceu, a tudo assistiu, os momentos banais e marcantes, os felizes e os nem tanto, viu gente entrar e sair – nunca compreendeu o estranho mecanismo dos homens –; só não deixou os momentos registrados por até hoje não dominar bem o português. Espero que sua memória não esteja começando a falhar e a se esquecer de tudo o que testemunhou. Será que os relojoeiros consertam caduquice?


O relógio da parede da sala está fora de prumo e só funciona meio tombado para a direita. Faz lembrar os versos de Drummond: “Do lado esquerdo carrego meus mortos. Por isso caminho um pouco de banda”.


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