Cassio Zanatta: O fim do Carnaval

Hoje, fico apenas impressionado: ontem mesmo, éramos em 16 nesta casa

Por: Cassio Zanatta  -  15/02/24  -  06:23
  Foto: FreePik

Pouco me importa se o Carnaval acabou, já me entristeci mais com isso. Tampouco o fim do verão me decepciona, sobrevivi a muitos. Hoje, fico apenas impressionado: ontem mesmo, éramos em 16 nesta casa. Havia risadas, música, leveza, bebida. De repente, algumas horas depois, estou sozinho de noite, no lugar que finge ser o mesmo; todos voltaram para a vida como vieram, num estalo, um sopro.


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A vida tem ciúme da felicidade. Por isso ela inventa a cárie, o Imposto de Renda, as rugas, as provas bimestrais. E substitui a festa por um monstruoso silêncio, ainda que alguns grilos se esforcem e algumas vozes de fantasmas cantem no corredor.


Alguém manda uma foto e a alegria, congelada no ontem, incomoda ainda mais. Veja nossa inocência, achando que aquilo não teria fim. E cada coisa guardada na gaveta carrega consigo uma passagem, um sentimento, um mal-entendido, a vida.


Sobrou um naco de pudim na geladeira. Errado. As coisas não têm o direito de continuar, é preciso que elas entendam isso. Repare como algumas aprenderam como devem acabar: o sabonete que dura o tempo exato da estadia, a pasta de dente que deveria durar mais um mês, mas, como a festa acabou, automaticamente se consome. O mesmo com o fim preciso do leite e do cacho de bananas. O pudim não entendeu a lição e essa traição nos destrói. Vou passar a tarde jogando a calda em cima do doce, ao som de uma marchinha antiga, numa patética tentativa de afogamento.


Há alguma resistência. A ligação da amiga para dizer que esqueceu a bermuda no armário. Uma chave deixada no meio das revistas. O brinquedo encontrado debaixo do sofá. Um confete que levanta voo quando a gente balança a rede.


Mas o dia vai chegar em que todo mundo estará, sem precisar voltar. Poderemos então acabar com todas essas garrafas com mais calma, mesmo se houver confidências. Será obrigatório vestir fantasia, em especial nos velórios e idas aos cartórios. Providenciaremos pão, manteiga, um cachorro de rua e sal de frutas para todos. E quando esse dia chegar, quem levantar a voz para falar mal de alguém ou por causa de política vai levar espuma de neve na cara.


Mas na parede há o relógio. Assistiu a tudo, com paciência e até uma certa indiferença. Agora, no silêncio que substitui a música, seu badalo impera, como a lembrar que quem manda nessa joça é ele, sempre mandou, e não vai parar mesmo se a gente se esquecer de dar corda.


Onde estão todos, senhores fantasmas? Só há alguns colchões pelados e uma ou outra formiga. Mas até os fantasmas se recolheram. Talvez o momento nem mereça vinho, no máximo um licor de jabuticaba. Vejo no calendário quantos números a vida enfileirou até a próxima vez em que estaremos juntos. E esvazio o tubo de espuma no asfalto em frente de casa.


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