Rota peregrina 'Caminho da Fé' passa por estradas de dois estados até Aparecida do Norte

Rota tem 421 quilômetros e passa por Minas Gerais e São Paulo

Por: Evandro Siqueira, especial para A Tribuna  -  01/08/21  -  22:26
 Roteiro chega a quase 900 quilômetros pra quem escolhe a rota mais longa
Roteiro chega a quase 900 quilômetros pra quem escolhe a rota mais longa   Foto: Reprodução/Caminho da Fé

Amanhece na Serra da Mantiqueira. Faz frio. Os pés, castigados por bolhas, já não latejam como ontem. Parecem renovados. Na mesa, um café reforçado. É preciso energia. Na mochila, duas mudas de roupa, itens básicos de higiene e um kit de primeiros socorros. Nada de excessos. Na mão, um cajado de madeira com um terço amarrado na ponta.


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As pernas da empresária Mariana Andolfato se movem quase que automaticamente, numa rotina de fé, aventura e paisagens deslumbrantes. São os últimos 24 quilômetros do Caminho da Fé, como é chamada a rota oficial de peregrinação rumo a Aparecida, no Interior de São Paulo.


Ao lado de um grupo de romeiros, Mariana segue a pé para o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. É o segundo maior templo católico do mundo, menor apenas que a Basílica de São Pedro, no Vaticano. Os passos são firmes, apesar do cansaço acumulado ao longo dos mais de 400 quilômetros percorridos em duas semanas.


“Não estou pagando promessa”, conta a empresária, devota da santa. “Vim apenas agradecer por estar aqui, viva, vacinada e com saúde”.


A caminhada de Mariana começou 16 dias antes, em Tambaú, cidade paulista muito visitada por católicos. Foi lá que, na metade do século passado, surgiu a fama de santo do Padre Donizetti. Em 2019, a Igreja reconheceu alguns de seus milagres e beatificou o padre, que faleceu em 1961 e era devoto de Nossa Senhora. A casa onde ele viveu virou museu. Até hoje, fiéis vão lá fazer promessas e agradecer por graças alcançadas.


Longo caminho


Tambaú é apenas um dos 17 pontos de partida do Caminho da Fé. O percurso tem 421 quilômetros, mas chega a quase 900 pra quem escolhe a rota mais longa, que começa em São José do Rio Preto, no noroeste paulista. Ao todo, o caminho passa por 72 cidades de São Paulo e do sul de Minas Gerais.


Desde 2003, mais de 70 mil pessoas já fizeram a peregrinação. O Caminho da Fé é a versão brasileira do famoso Caminho de Santiago de Compostela, que corta França, Portugal e Espanha. Assim como na Europa, os peregrinos seguem setas amarelas para chegar ao destino final.


Após escolher o ponto de partida, o viajante compra uma credencial (R$ 20,00). É uma espécie de passaporte, que vai sendo carimbado ao longo do percurso. Os carimbos servem para comprovar a peregrinação. Quem consegue chegar ao Santuário de Aparecida recebe um certificado de conclusão (R$ 10,00).


As peregrinações mais comuns são feitas a pé e de bicicleta. Nos dois casos, exigem um certo preparo físico. Em média, um peregrino anda 25 quilômetros por dia, enquanto um ciclista pode pedalar até quatro vezes mais. Raramente, o trajeto é plano. Por isso, é comum o surgimento de bolhas nos pés e dores pelo corpo, devido ao excesso de esforço físico.


Mente e corpo


Peregrinos mais experientes contam que o preparo psicológico é tão importante quanto o condicionamento físico. As dores acumuladas ao longo dos dias fazem muitos pensarem em desistir. Dizem os peregrinos que, nessas horas de dor, é a fé em Nossa Senhora que os empurra adiante.


Gervásio Costa tem 63 anos e uma história de devoção à santa padroeira. Curado de um câncer no intestino, ele dedica a maior parte do tempo às peregrinações pelo Caminho da Fé. Só este ano, já fez 14 vezes o trecho de 180 quilômetros entre Pouso Alegre (MG) e Aparecida. “Ter fé é acreditar no impossível, porque o possível o ser humano faz, a ciência faz”, conta o aposentado. “A oração sempre esteve na minha vida”.


A fé de Gervásio é tamanha que ele atribui a Nossa Senhora o fato de ainda estar vivo. Depois do câncer, ele começou a ficar com a visão bastante debilitada. “Foi escurecendo a vista, eu não conseguia nem mais ler e escrever. A médica disse que eu ia ficar cego”. Gervásio não parou de andar. Buscava na fé a esperança de voltar a enxergar.


A situação foi se agravando e, há dois anos, durante uma peregrinação, acabou atropelado por uma moto. Teve três coágulos no cérebro e fraturas na perna. Passou quatro dias inconsciente numa UTI e, ao sair do coma, não só se recuperou, como voltou a enxergar. “Não é possível, eu tô enxergando”, lembra do que disse, ainda no hospital.


Histórias como a de Gervásio são comuns no Caminho da Fé. Quase todo peregrino tem algo pra contar sobre a relação de fé em Nossa Senhora Aparecida. Mas agradecer à santa não é a única motivação. Muita gente vai em busca de autoconhecimento, de renovação de energias, de espiritualidade.


A psicóloga Eliane Otoboni, que trabalha com crianças e adolescentes em Araçatuba, uniu tudo isso na peregrinação que fez ao lado do marido e de amigos, em julho. Ela caminhou cerca de 200 quilômetros em oito dias, de Borda da Mata (MG) a Aparecida.


“Eu fui no propósito de agradecer pela minha vida, pela minha família”, conta. “O caminho me trouxe muito mais que gratidão. Foi uma imersão de evolução pessoal, conexão com a minha fé e experiência de vida inesquecível. As marcas do caminho serão eternas, as pessoas e suas histórias, a paisagem, a superação física e a espiritualidade renovada”.


Paisagens de tirar o fôlego


[TXTRET]Na maior parte do tempo, os peregrinos andam por estradas rurais, de terra batida. É preciso cruzar fazendas, subir e descer montanhas e, em alguns trechos, caminhar na beira de rodovias pouco movimentadas. As flechas amarelas, indicando a direção, estão em toda parte. E a natureza é exuberante. Os peregrinos encontram paisagens de tirar o fôlego.


Como é uma rota oficial, o caminho tem uma rede credenciada de pontos de apoio e hospedagens. Em geral, o peregrino dorme uma noite em cada cidade por onde vai passando.


Na hora de escolher onde ficar, não espere luxo. As pousadas e hotéis são bem simples. Oferecem, basicamente, cama, chuveiro e fartas refeições caseiras, ricas em carboidratos. É tudo o que o peregrino precisa pra descansar e retomar a caminhada na manhã seguinte.


Há, ainda, a opção de se hospedar em casas de famílias. Essas casas também são credenciadas e oferecem uma experiência única.


Seu Zacarias e Dona Sônia vivem num sítio, na área rural de Ouro Fino (MG), bem na rota do Caminho da Fé. O casal até investiu na ampliação da casa, pra conseguir atender a demanda crescente de hóspedes.


Dona Sônia recebe todos com um sorriso no rosto e uma comida tipicamente mineira, preparada no fogão de lenha. A hospedagem, com jantar e café da manhã inclusos, custa menos de R$ 100,00 por pessoa.


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