'Somos uma sociedade permissiva com violência sexual de crianças e adolescentes', diz Luciana Temer

Presidente do Instituto Liberta trabalha para que o assunto seja visível não apenas na imprensa, mas nas escolas, nas famílias e, principalmente, nos órgãos públicos

Por: Arminda Augusto & Editora-chefe &  -  30/08/20  -  22:32
Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta
Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta   Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO CONTEÚDO

A entrevista com Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, durou uma hora, intervalo de tempo em que, estatisticamente, ao menos quatro crianças e adolescentes são abusadas sexualmente no Brasil. É com dados assim que o instituto, criado há quatro anos, trabalha para dar voz a um tema que só ganha a mídia quando acontecem casos como o da menina do Espírito Santo, grávida aos 10 anos, vítima de estupro por parte do tio.


Luciana Temer não sai da mídia nas últimas duas semanas, mas trabalha para que o assunto seja visível permanentemente não apenas na imprensa, mas nas escolas, nas famílias e, principalmente, nos órgãos públicos, onde faltam políticas específicas para lidar com essa questão. 


Qual a diferença entre abuso sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes?


Popularmente, falamos em abuso e prostituição infantil. Quando as pessoas falam em abuso estão se referindo a um crime previsto no Código Penal chamado estupro de vulnerável, que é manter qualquer tipo de ato sexual com crianças e adolescentes de zero a 14 anos. A pena prevista é até 15 anos de prisão. O outro crime previsto no código é a exploração sexual, com o recorte de 14 a 18 anos. Se um adulto paga para fazer sexo com uma menina ou menino até 18 anos...


Paga em dinheiro?


Não necessariamente. Pode ser qualquer troca mercantil. Pode ser um saco de bolacha, o convite para uma festa. Ou seja, qualquer relação sexual que tenha alguma troca envolvida já significa exploração sexual de adolescente. A pena é de até dez anos de cadeia, tanto para quem teve a relação, como para quem agenciou e para o dono do estabelecimento onde o fato se consumou.


Ou seja, o Brasil não tem problema de legislação punitiva.


Exatamente. Nossa legislação é bastante severa.


O caso do Espírito Santo chama a atenção porque o abusador era uma pessoa da família e há mais de quatro anos. Pela sua experiência, qual a situação mais comum: a família não sabe, não percebe, tem medo de denunciar ou o quê?


Todas essas situações existem. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2017 foram registrados mais de 141 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, o que dá uma média de 55 crianças abusadas por dia no País.


Mas deve haver muita subnotificação, não?


Não tenha a menor dúvida. Se a gente analisa esses dados, temos que 40% são da Região Sudeste, e 20% da Região Sul. Ou seja, de 55 crianças abusadas por dia, 33 são do Sul e Sudeste.


Ou seja, o que acontece no Norte e no Nordeste ninguém fica sabendo?


Exatamente. Por isso sabemos que existe uma enorme subnotificação. O dado mais atualizado que temos é da Plataforma Brasileira de Segurança Pública, de 2019: quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora. Esse é o número mais atualizado e com o qual trabalhamos. E mesmo assim, essa realidade continua com muita subnotificação.


E qual é a relação das famílias com esses casos?


Nós temos que mais de 71% desses casos acontecem dentro das residências, portanto, são intrafamiliares. E é diferente da exploração sexual, que normalmente acontece com pessoas de fora da residência. A situação de abuso é intrafamiliar na maioria dos casos. Todas essas situações que você destacou são possíveis e acontecem.


Mas ninguém da família perceber soa bastante estranho, não?


Sim, por mais louco que possa parecer, acontece. E por que a família não percebe? Porque, às vezes, essa criança não tem a consciência do que está acontecendo. Se a criança é muito pequena, ela nem sabe que aquilo é uma violência sexual. Eu soube do caso de uma moça que, quando tinha 5 ou 6 anos, fazia algumas coisas para o tio em troca de poder usar o videogame. Na cabeça dela, aquilo era normal, era uma troca como outra qualquer. Quando ela cresceu e percebeu que aquilo não era normal, sentiu muita vergonha por ter permitido, por não ter contado pra ninguém. Então, essa questão do silêncio é muito séria. Quando é que a nossa sociedade vai parar de silenciar?


E quando os pais souberam?


Eles queriam tomar uma atitude, mas a família abafou por vergonha daquela situação. E, aí, quem fica estigmatizada é a vítima. Muitas vezes, a família acha que silenciar sobre o caso vai proteger a vítima, vai evitar exposição. Essa é uma falsa ideia de que abafar protege a menina ou menino violentado. O que precisa ficar claro é que o silêncio não protege a vítima, porque o dano já aconteceu. Ao contrário: falar sobre isso é libertador para a vítima, para que ela não cresça carregando tudo isso.


O silencio também acaba gerando impunidade.


Exato. E quando geramos impunidade, acabamos provocando a naturalização desse tipo de comportamento. E quando nós naturalizamos, nós permitimos. Portanto, depois de quatro anos de imersão nesse tema, minha conclusão é que somos uma sociedade permissiva com a violência sexual contra mulheres e também contra crianças e adolescentes. Então, estamos falando de várias situações: quando a família não enxerga; quando a família enxerga, mas silencia e, portanto, pactua com isso; e a gente tá falando também de famílias que sabem, mas não denunciam porque têm medo, porque também são vítimas de violência.


Há também um conceito de que a violência sexual acontece apenas – ou predominantemente – nas famílias mais pobres, e não é bem assim, certo?


Não é assim mesmo. Acontece em todas as famílias. Quando falamos dessa violência, no nosso imaginário estamos falando de pedofilia, e pedofilia é, sim, uma doença, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Comparar violência sexual com pedofilia não é correto, é injusto. Mais de 70% dos casos de abuso sexual foram praticados por homens que nunca tiveram nenhum distúrbio. Não estamos falando de pedofilia, portanto. Estamos falando de uma naturalização, de uma objetificação do corpo da mulher, da criança, da menina, sobretudo. E essa sensação de poder acontece com homens de todas as classes sociais e econômicas.


Estamos falando, então, de homens perturbados.


De homens perturbados, sim, que muitas vezes são bons pais de família, bons trabalhadores. E, aí, a gente fala da criança que, muitas vezes, é desacreditada, justamente porque aponta para um homem que é bom pai de família, boa pessoa. Quem vai acreditar nessa criança? Não está escrito na testa do sujeito que abusa de criança: “Eu sou um monstro”. 


Você diria que um caminho possível é levar a educação sexual para a sala de aula, mesmo para crianças pequenas?


Mais do que um caminho, eu diria que é o único caminho. Falar sobre sexualidade nas escolas não estimula o sexo precoce, nada disso. Eu até estou trocando o termo: não vamos falar sobre sexo nas escolas, vamos falar sobre violência sexual nas escolas. Acho que é mais bem compreendido quando a gente diz assim. Com crianças pequenas, inclusive, porque, quando se abre esse diálogo, ela pode compreender o que está vivendo e pedir socorro.


E como se identifica que uma criança pode estar sendo vítima de violência sexual?


Veja, eu não sou psicóloga, mas temos relatos na literatura que falam sobre a criança ficar mais agressiva, mais recolhida, mais deprimida, pode parar de comer, de dormir, ou dormir demais. São muitas situações diferentes. Ou seja, você quer mesmo saber se a criança pode estar sendo vítima. Então, explique pra ela o que é, fale sobre isso abertamente, com o vocabulário adequado para a idade. Não espere que ela venha dar o sinal. 


Imagino que, em quatro anos, você já deva ter visto de tudo um pouco.


Olha, de tudo um pouco, sim. A sociedade, muitas vezes, culpabiliza a menina de 12 anos que foi abusada sexualmente. A gente já soube de uma sentença que absolveu o padrasto de uma menina de 12 anos, que foi abusada por ele, porque o juiz entendeu que ela provocava o homem. Estamos falando aqui de distorção, de machismo. É normal que meninas assim se sintam culpadas por terem sido vítimas. Precisamos sempre lembrá-las que elas não são culpadas de nada.


E a rede de saúde, está preparada para identificar casos de violência sexual com crianças e adolescentes quando um caso chega à porta?


Quando a gente fala de rede pública, principalmente, tem de tudo: dos lugares piores aos que são referência. Outro dia ficamos sabendo do caso de um menino de 5 anos que foi levado pela mãe a um pronto-socorro porque estava com sangramento anal. O médico nem olhou e disse que estava com intestino preso. Semanas depois, a mãe descobriu que a criança estava sendo abusada pelo padrasto. Portanto, quando falamos dessa situação, ou da sentença do juiz, ou da família que acoberta, estamos falando de uma coisa só: como é que a sociedade fala e enxerga essa violência? A hora em que conseguirmos mudar isso, você transforma todo um sistema.


Você acredita que a pandemia pode fazer crescer o número de casos?


Podemos contar que sim. Esse confinamento, que é necessário, vai esconder uma violência. Já temos ciência de que os casos de violência contra mulheres aumentaram, e podemos esperar que contra crianças e adolescentes também vão. Não temos ainda esse dado porque a criança não tem a quem denunciar, não está indo para a escola. 


Em termos de legislação, o Brasil está bem coberto?


Sim, eu diria que sim. O que não temos ainda? Não temos instrumentos de política pública para trabalhar essa menina depois, a partir da denúncia. Tem uma lei aprovada em 2017, conhecida como Lei da Escuta Protegida, que tenta evitar a revitimização dessa menina, desse menino. E como você evita a revitimização? Quando essa criança não precisa contar toda a história várias vezes, quando ela faz seu depoimento em local apropriado, com pessoas capacitadas, quando a perícia é feita de forma adequada, com cuidado específico. Essa lei já existe e precisa, agora, ser estruturada nos municípios. Isso demanda tempo.


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