Conexão Irlanda: Quando as ruas ensinam

Nesta edição da coluna, Camila Natalo conta pontos importantes que impulsionaram a proclamação da República do país

Por: Camila Natalo - De Dublin  -  15/08/19  -  19:41

No meu caminho diário para o trabalho, reparei em uma nova obra pela cidade. Até aí, nada anormal. Ao passar dos dias, um novo painel de propaganda me chamou atenção: “Sean Foster Place”. Pensei comigo: “Será um lar para crianças órfãs?” (foster pode ter o significado de adotar ou adotivo, daí vem meu raciocínio). Segui meu rumo. 


Em um outro dia, passo novamente pela obra, agora acompanhada do meu marido. Olhamos a propaganda e divagamos sobre o empreendimento. Ele me aponta outros detalhes que não havia percebido, e parece se tratar de um prédio normal, que inclusive terá apartamentos de um, dois e três quartos. 


Com toda a crise imobiliária que cerca a cidade, Dublin já se tornou a oitava cidade mais cara do mundo para alugar um imóvel. Sendo o valor médio de um apartamento de dois quartos € 1.800 por mês, uma alta de 23% desde 2014 – o maior aumento de qualquer outra cidade no top 10 (incluindo Hong Kong, São Francisco, Paris e Londres, por exemplo). O New York Times publicou neste ano um artigo sobre os aumentos de renda da Irlanda desde 2016. Os aluguéis em todo o país aumentaram 14% desde 2016, com uma previsão de alta de mais 17% até 2022.


Talvez por este motivo, nosso primeiro pensamento ao ver a propaganda foi: “Precisamos procurar saber desse prédio”. Afinal, como a maioria das pessoas, nós também sonhamos em ter um lar pra chamar de nosso, além de, claro, nos livrarmos dessa vida de aluguel – que, em Dublin, é um valor alto e sem retorno.


Eis que fui pesquisar sobre a construção e tive uma surpresa. A habitação recebeu o nome de Sean Foster (nesse caso, Foster é um sobrenome) em memória da vítima mais nova, morta durante a Revolta da Páscoa de 1916, em Dublin. Sean tinha só dois anos e foi morto acidentalmente com um tiro na cabeça. A rua, North King, foi centro de intensos combates durante a rebelião, com o total de 16 mortos – sendo nove deles no local do novo imóvel.


A revolta aconteceu durante a Semana Santa em vários pontos da cidade, durante seis dias, como tentativa dos militantes republicanos irlandeses de conquistar a independência de seu país, aproveitando a brecha de que boa parte das forças armadas britânicas lutavam na Primeira Guerra Mundial. Foi o movimento mais importante na Irlanda depois da rebelião de 1798.


Aliás, vale lembrar que a leitura da Proclamação da República da Irlanda, na famosa O´Connell Street, aconteceu justamente nesse período. Foi a única proclamação de sua época que citava igualmente homens e mulheres, começando o texto por: Irishmen and Irishwomen (irlandeses e irlandesas).


E foram justamente os civis, como Sean Foster, que pagaram o preço mais alto com a rebelião.


Três grupos formavam os militantes: Irish Volunteers (voluntários irlandeses), Irish Citizen Army(exército dos cidadãos irlandeses) e Cumann na mBan (uma organização formada por 200 mulheres), um total de aproximadamente 1.200 participantes. Foram justamente os civis, como Sean Foster, que pagaram o preço mais alto durante a rebelião.


Pesquisas recentes mostram que enquanto 485 pessoas morreram, 54% eram civis. Esse alto número de mortes causado pela postura britânica levou os irlandeses em geral a questionarem sua relação com a Inglaterra e se oporem de fato ao Governo Britânico.


Apesar de terminar sendo suprimida, com a maioria de seus líderes condenados eexecutados pelos britânicos, dois anos depois, nas Eleições Gerais de 1918 (a última realizada em toda a Ilha da Irlanda para o Parlamento do Reino Unido), os republicanos ganharam 73 das 105 cadeiras, mas não tomaram posse. O que fez com que, no ano seguinte, os membros eleitos do Sinn Féin (partido político que unia nacionalistas de resistência pacífica ao domínio britânico) convocassem a Primeira Assembleia em Dublin e declarassem formalmente a República da Irlanda. 


É claro que, na época, o governo britânico se negou a aceitar a legitimidade da recém-declarada nação, o que levou à Guerra da Independência da Irlanda (1919-1921), história que fica para outro dia.


Embora a Proclamação da República da Irlanda tenha acontecido em 1916, foi somente em 6 de dezembro de 1922 (ano em que minha vó materna nasceu) que sua Independência foi reconhecida. 


Irlanda, um país relativamente pequeno e que reconquistou sua Independência há menos de 100 anos, onde todos os cantos são cheios de história e as ruas ensinam, mesmo que ao acaso.


Sobre a autora


Camila Natalo é natural de Itanhaém, bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo.


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