Especialista diz que educação de crianças exige calma em meio à quarentena

‘Precisamos ter calma. As crianças ainda estão processando todas as informações’, diz Ângela Cotrofe em entrevista para o Jornal A Tribuna

Por: Arminda Augusto  -  03/05/20  -  18:39
"Julgar a qualidade da escola, neste momento, é equivocado", diz Ângela Cotrofe   Foto: Vanessa Rodrigues/AT

Em entrevista com a neuropsicopedagoga Ângela Cotrofe, o Jornal A Tribuna abordou aspectos da educação de crianças e adolescentes em meio aos tempos de pandemia de coronavírus, a Covid-19. A especialista abordou o comportamento de alunos, mudanças na rotina de estudos e aspectos emocionais refletidos no modo de aprender durante o evento A Região em Pauta, transmitido ao vivo pelas redes sociais do Grupo Tribuna na última segunda-feira (27). Confira na íntegra:


AT - Nesses quase dois meses de quarentena, você já percebe alguma mudança nos relatos das crianças e adolescentes que você atende? O que mudou no universo da preocupação deles?


É uma situação desafiadora e emergencial. As famílias estão precisando de ajuda, e não só as crianças e adolescentes. Neste momento, não dá pra falar de criança sem falar da família. É um contexto só. Então, a primeira coisa é identificar quais são esses elementos que comprometem ou favorecem o processo de aprendizado que as famílias estão vivendo. O que eu vejo e que é muito importante diferenciar é o tempo de elaboração da construção do pensamento da criança e do adulto.


AT - Explicando melhor...


Por exemplo, pra criança, o coronavírus ainda é invisível, é abstrato. A criança ainda vai demorar um pouco pra conseguir processar tudo isso. Ela não está vivendo só o coronavírus. Ela tá vivendo o não frequentar a escola, a relação intensa com os pais, os pais ocupados fazendo home office, sem aquela pessoa que ajudava nas tarefas domésticas. Então, de modo geral, é um novo processo de aprendizado. Eu entendo que nós, profissionais da área da Saúde, temos que reduzir ao máximo os impactos que esse período está provocando nas famílias. As estruturas emocionais estão abaladas. É tudo muito complexo.


AT - A pandemia mudou o perfil das queixas ou dores emocionais que as crianças e adolescentes levam para o atendimento que você faz?


As crianças e jovens que eu atendo já estavam vivendo um processo emocional. De princípio, o meu foco era continuar o processo que eu vinha desenvolvendo, não desamparar, mas apenas transferir do presencial para o on-line. Mas o que aconteceu? Quando você entra on-line aparece a figura dos pais pedindo socorro. Quando eu vi essa angústia dos pais dentro dos lares, não tem como não pensar na saúde emocional dessa família. É preciso construir uma rotina de atendimento. Então, eu propus para todos os pais termos 15 minutos de conversa antes da criança. Tem sido muito bom. 


AT - Por que?


Tenho notado que a preocupação maior das famílias, principalmente com crianças, é a lição de casa. Então, o que mais me tocou foi eu ter a oportunidade, neste momento, de dedicar um pouco do meu tempo a esses pais e trabalhar com eles a saúde emocional da criança. 


AT - E esse momento é sem a presença da criança? E tem funcionado?


Só com os pais. É o momento de eles me passarem a dinâmica que a família tem vivido nesse período de quarentena. Está funcionando muito bem, porque com essa fala dos pais eu posso traçar um plano e posso trabalhar o neuro, o psico e o pedagógico. Com tudo isso, tenho procurado orientar esses pais assim: é importante que eles estejam conectados com a escola não só por causa da lição de casa. Eles têm que entender que a escola tem especialistas, pessoas capacitadas para poder orientá-los. Esse é o momento de procurar a escola, estar junto dela e se orientar sobre esse novo momento do aprendizado. Também peço que eles fiquem muito atentos à higienização dos ambientes, porque isso é fundamental.


AT - A rotina dessas crianças e jovens em casa também mudou. Você tem sentido dificuldade das famílias e deles próprios em lidar com isso?


As crianças estão tendo ganhos e perdas, na minha opinião. Por exemplo, noto que tem havido maior construção de afeto nos lares, as crianças estão tendo esse aconchego e essa presença emocional dos pais, uma convivência maior entre todos. Ao mesmo tempo, há também muitos fatores de estresse nessa adequação digital. Eu tenho pais que também estão trabalhando em home office, e começam a jornada às 8 horas da manhã. E eles se perguntam: que horas eu vou fazer lição de casa com meu filho? Alguns estão acordando 5 horas da manhã pra fazer essa lição com os filhos. Eu vejo pais se colocando na função de professor…


AT - Mas isso já acontece mesmo antes da pandemia...


Sim, mas a criança tem que ter autonomia. Os pais não têm que tomar o lugar do professor. Agora, o que é preciso é organizar a rotina. As crianças precisam saber que não estão de férias. Elas estão vivendo um resguardo, e logo, logo vão voltar pra escola. Em algumas famílias, porém, noto que a rotina deixou de existir. Em um dos atendimentos que fiz recentemente, me conectei às 15 horas e a criança estava dormindo e ainda ia almoçar, porque ficou acordada até tarde. Isso tem acontecido muito com adolescentes, focados em jogos eletrônicos. Muitos pais acabam deixando porque me dizem que esses jogos acalmam eles neste momento. 


AT - Então o que você diz é que criar essa rotina é fator importante para dar conta de todas as atividades.


AT - Exatamente. Em muitos lares noto que isso está acontecendo. Nos meus atendimentos, noto que o ambiente é sempre o mesmo, tem silêncio, conexão adequada, ambiente tranquilo. Em outros, a TV tá ligada muito alto, tem cachorro latindo o tempo todo, gente passando pra lá e pra cá. E eu estou falando de crianças de famílias que podem manter uma escola particular. Imagino que em muitos lares haja ainda outros problemas, como não ter o que comer, pais desempregados. O Brasil é um país de dimensões continentais e muitas desigualdades. A família precisa estar alertada. Por isso eu disse que as crianças ainda estão elaborando, processando todas essas informações. Precisamos ter calma, tranquilidade, permitir que elas possam digerir tudo isso.


AT - Ainda sobre a rotina, você acha que ela deve respeitar os horários que ela já tinha na escola?


Eu acho que é um pouco impossível manter assim de forma tão rigorosa, até porque as rotinas da mãe, do pai também mudaram e interferem no dia a dia da casa. O importante é inserir nessa rotina as coisas que são fundamentais pra vida dela: tomar café da manhã, tomar sol (na varanda ou na janela mesmo), manter a alimentação regular. E já que tudo tem que ser dentro de casa, incluir yoga na rotina, meditação, tudo isso ajuda a diminuir a ansiedade e o estresse. 


AT - As escolas estavam preparadas para a aprendizagem 100% digital?


As escolas não estavam preparadas plenamente. Mas de forma geral, todas estão muito envolvidas para fazer um trabalho com competência. Também é preciso entender que muitas crianças têm facilidade no aprendizado e outras, não. Há crianças que têm transtornos de aprendizado. Não dá para todas responderem do mesmo jeito. Algumas escolas resolveram antecipar as férias para que pudessem se estruturar melhor. Julgar a qualidade da escola, neste momento, é equivocado, porque sinto que todas estão buscando seus caminhos e vão conseguir, sim. Minha preocupação não é nem a lição de casa, mas é com o processo ensino-aprendizado. A criança está fazendo lição e está aprendendo ou só fazendo lição de casa?


AT - Essas crianças e jovens relatam medo da morte ou de perder alguém querido? Como lidar com isso?


Graças a Deus eu ainda não tive nenhum relato de morte, mas é muito importante não mentir para as crianças. O mundo está vivendo uma pandemia. É preciso prepará-la devagar, ir respondendo conforme ela for perguntando.


AT - Como os pais devem lidar com o excesso de exposição a notícias ruins deste momento?


Essa é uma dúvida bastante comum dos pais. Ninguém pode ficar sem informação neste momento. Ela é necessária e importante. Os pais precisam ressignificar a informação antes de um pré-julgamento. As notícias vêm para nos informar, mas precisamos entender o que disso tudo é importante para a nossa realidade. E passar esse conceito para as crianças de forma simples e verdadeira.


AT - E para esses pais que têm dúvidas se estão fazendo tudo certo, que mensagem é possível deixar?


Eu diria a eles para ficarem atentos às estruturas emocionais das crianças e confiarem na escola, interagirem com a escola. Eles não estão sozinhos e é dessa troca que surgirão os bons caminhos.


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