'O Santos tem uma capacidade de se reinventar e jamais se acovardar que me encanta', diz Cortella

Um dos principais filósofos do Brasil, escritor fala sobre seu amor pelo time da Vila Belmiro

Por: Bruno Lima  -  20/04/20  -  12:11
Atualizado em 21/03/23 - 07:09
Mário Sergio Cortella não resistiu ao brilhantismo de Pelé com a bola nos pés e se tornou santista
Mário Sergio Cortella não resistiu ao brilhantismo de Pelé com a bola nos pés e se tornou santista   Foto: Rafael Arbex

Filósofo, professor, escritor e ex-secretário de Educação de São Paulo, Mário Sergio Cortella, assim como muitos brasileiros, é apaixonado por futebol. Apreciador do jogo bem jogado, ele tem o Santos como time do coração por influência de Pelé e pela capacidade alvinegra de “se reinventar e jamais se acovardar”.


Em entrevista exclusiva para ATribuna.com.br, Cortella fala sobre o amor pelo Peixe, a relação que mantém, desde criança, com o time da Vila Belmiro, ética no futebol e a pandemia do novo coronavírus.

Como nasceu a sua paixão pelo Santos?


Nasci em Londrina, no norte do Paraná, e vim para São Paulo com 13 anos. Nessa região se torce mais para os times de São Paulo do que para os times do Paraná. Além disso, nasci em 1954. Em 1962, quando o Santos estava numa decolagem cada vez mais forte, com as conquistas dos mundiais de 1962 e 1963, além das Libertadores, eu era um menino que estava com 8 para 9 anos. Portanto, idade que o futebol captura, porque ele passa a ser a prática de um menino, como era o meu caso, num campinho, nas escola e igrejas. Junto a isso, o time interessava imensamente naquele momento.

Não teve a influência de nenhum familiar torcedor do Santos?


A minha família torna a escolha pelo Santos ainda mais interessante. A minha mãe é corintiana, meu pai são-paulino e ainda casei com uma palmeirense. Como nasci em 1954 e o Santos eclodiu com muita energia em 1962, isso me fez sair da sina familiar de torcer para São Paulo ou Corinthians. Em 1964, com 10 anos, e já praticando futebol, o Santos já tinha uma grande expressividade. E lembro de ouvir no rádio um jogo contra o Botafogo-SP em que o Pelé fez oito gols. Não há quem resista, tendo 10 anos de idade, a um jogador capaz de uma proeza dessas.

O senhor é aquele torcedor que sofre pelo Santos?


Sempre brinco que já fui apaixonado pelo Santos e hoje tenho amor. Qual a diferença? A paixão é a perda temporária do juízo. Quando você está apaixonado por algo ou alguém, você não raciocina direito. Já o amor é a paixão domada, organizada e acalmada. Gosto de futebol e gosto bastante do meu time. Mas sou capaz também de reconhecer as coisas que os outros times fazem de bom, inclusive contra o próprio Santos. Há não muito tempo, o Flamengo venceu o Santos por 5 a 4, na Vila Belmiro, e, mesmo como santista, não tem como não admirar aquela condição.

O senhor fala muito sobre o Pelé. Ele é o seu maior ídolo no futebol?


Sem dúvida! No futebol é sim. Ele não é o único, mas está acima de qualquer referência que marcou a minha concepção sobre a prática desse esporte. Tenho outros ídolos no futebol e de outros clubes também. Mas, no Santos, além do Pelé, tenho também o Coutinho em grande escala e o Toninho Guerreiro, antes de ir para o São Paulo. Sempre os admirei como atletas e como capacitores de um movimento que embelezava os vários momentos do futebol.


Sempre tive também grande admiração pelo Clodoaldo e pelo Pepe, pela força que tiveram no futebol. Porém, sempre tive uma dor interna pelo Lima. Não que o Lima não fosse um estupendo atleta. Ele era. Mas sempre entrava em várias posições. Era uma espécie de faz tudo. E, no meu entender, isso prejudicou um pouco a carreira dele, pois aquele que serve para vários lugares não marca assento exclusivo em lugar nenhum. E eu gostava de vê-lo jogar, mas a presença em campo era um pouco mais limitada.

O senhor viu o auge do Santos, mas viu também o período de vacas magras. Como foi conviver com as gozações dos rivais?


Por conta da idade, é muito comum outros torcedores me abordarem e falar que sou viúva do Pelé. E digo que é um privilégio meu ser viúva do Pelé. É melhor ser viúva do Pelé do que ser amante, abandonada, largada na história por alguns outros jogadores que não chegaram perto daquilo que o Pelé fez no futebol.


Além de Pelé, Cortella tem Coutinho, Toninho Guerreiro e Lima como ídolos do futebol
Além de Pelé, Cortella tem Coutinho, Toninho Guerreiro e Lima como ídolos do futebol   Foto: Reprodução/Instagram

Existe no Santos a vocação ao futebol ofensivo. O senhor também é torcedor que exige o futebol bonito, com muitos gols, ou se conforma com uma vitória magra?


Sempre admirei no Santos a possibilidade de encantar. O Santos pratica algo no esporte que não é apenas a vitória. É claro que a vitória é boa e importante, mas ela não é exclusiva em termos de encantamento. Existem vários momentos no Santos em que se perdeu uma partida, mas com a capacidade de não desistir, de se reinventar. Isso sempre admirei. Depois que transformei a minha paixão em amor, nunca me preocupei apenas com a vitória do meu time.


Uma das coisas de que gosto de lembrar é que o Santos me remete a um dos meus lemas de vida, que vem das artes marciais orientais e diz: 'Eu não luto a tua luta, eu danço'. E na minha memória, o Santos é o time que mais jogou como dança, aquilo que é prática do futebol. Mesmo que as vitórias tenham sido expressivas, as conquistas importantes, elas nunca foram os meus únicos pontos para torcer. O Santos, ao longo de sua história, tem como característica nunca se acovardar.

Qual o título do Santos mais marcante para o senhor?


Eu tenho alguns títulos especiais. Os mundiais de 1962 e 1963, quando tinha 8 e 9 anos, me marcaram de maneira muito intensa. Principalmente porque em um dos jogos contra o Milan, no Maracanã, em 1963, aconteceu algo que tem a ver com a minha cidade de Londrina. Londrina tem uma escola religiosa, a Escola Marista, que tem uma banda marcial. No Brasil, a banda mais marcante foi a dos fuzileiros navais, que sempre fez as apresentações nos grandes eventos. E em um dos jogos do Maracanã contra o Milan, o Santos teve como introdução a banda da Escola Marista de Londrina. Eu não toquei, mas o músico Arrigo Barnabé, ainda menino, estava tocando.

O senhor costuma vir à Vila Belmiro assistir aos jogos do Santos?


Estive várias vezes na Vila Belmiro. E uma delas me marcou imensamente. Em 1972, estava com 17 para 18 anos, e fazia, além do ensino médio, cursinho pré-vestibular. As aulas do cursinho eram às 7 horas da manhã, e as da escola à noite. Me ausentei das aulas da escola numa quarta-feira e fui à Vila ver um jogo do Santos contra o valoroso Guarani. Lembro que o Santos venceu por 4 a 2 com três gols de Pelé e um de Clodoaldo.


Já faz algum tempo que não vou. A última vez que assisti a um jogo presencialmente foi Santos e Vasco há mais de 20 anos. Conforme fui me tornando mais conhecido, a presença em locais públicos me impede que fazer uma torcida mais tranquila. Não recuso as manifestações de carinho, mas não é difícil, nesse ambiente, que se tenham pessoas má intencionadas e que não entendam que futebol é apenas um jogo.

O senhor acredita que quando tudo voltar ao normal, após a quarentena, teremos um mundo melhor?


Não tem como voltar ao normal quando somos abalados por algo que o tempo todo está nos rondando. Que não tendo ainda meios eficazes de enfrentamento direto nos deixa em estado de atenção. Nesse período de quarentena, tivemos até a ressurreição de jogos antigos. O conteúdo da TV e do rádio passou a ser ocupado pelo que já foi. Não em nome da nostalgia, mas, especialmente, em nome do reconhecimento. Não acho que terá um retorno ao que era, nem acho que o que teremos em breve será inédito. Mas não será mais o mesmo. A frase mais estranha que se tem falado é tudo voltar ao normal. Lamento. O normal é o que está sendo estilhaçado. Jamais será idêntico.

Existe ética no futebol?


Tem que ter. Ética é o conjunto de valores que você adota para a sua conduta. Não existe ninguém sem ética. Existem pessoas que têm uma ética que colide com aquilo que a comunidade entende como saudável. Existe gente antiética, mas não existe ninguém sem ética. Existe ética no sentido de princípios de conduta até para a bandidagem em várias áreas. Uma pessoa que faz uso de substâncias ilegais como atleta está num caminho de escolha ética. Isso significa que ele tem escolhas de conduta nas quais cabe a trapaça para vencer. Isso é antiética. Por isso uma pessoa sem ética é uma pessoa que não pode fazer escolhas.


Uma criança com determinada idade, alguém com síndrome de Alzheimer, alguém que tenha distúrbio psiquiátrico, aquele que é incapaz de escolher, decidir e julgar com si mesmo. Por isso existe sempre, em qualquer instância da vida, uma ética e a sua prática são chamadas de moral. No futebol existem várias situações que são antiéticas e podem ser, assim como podemos ter em outras instâncias. Porém, ninguém no futebol é sem ética.


Tudo sobre:
Logo A Tribuna
Newsletter