O preconceito da loucura

Por: Roberto Debski  -  30/11/18  -  18:07
Van Gogh após cortar a própria orelha
Van Gogh após cortar a própria orelha   Foto: Divulgação

Talvez a doença mais estigmatizada e excludente socialmente na história do mundo seja a doença mental.


Embora estudos comprovem que pessoas que sofrem de doenças mentais possam ter mais possibilidade de êxito terapêutico quando inseridos em redes sociais de apoio, os “loucos” ainda são segregados em vários sentidos, e encontram uma barreira não visível que os mantém física e socialmente isolados em sua condição singular de habitantes de uma realidade alternativa.


Como o diferente sempre assusta e ameaça, os loucos historicamente foram segregados de diversas maneiras, chamados de endemoniados, tidos como bruxos, queimados e mortos, banidos em navios, ridicularizados, excluídos das famílias e da sociedade, e mais recentemente separados da sociedade em instituições como os hospitais psiquiátricos ou manicômios, que supostamente deveriam cuidar dos loucos, mas os expunham a situações comparáveis aos campos de concentração nazistas nos quais a dignidade humana não existia e a vida não era minimamente valorizada.


Nesses hospitais psiquiátricos eram internados à força não somente pessoas com transtornos psiquiátricos, mas também muitos que eram tidos como ovelhas negras das famílias, opositores do regime, prostitutas, mulheres e até crianças, os quais uma vez dentro do sistema, tinham mínimas ou inexistentes possibilidades de voltar à vida cotidiana fora da instituição.


A maioria das instituições e dos hospitais psiquiátricos até a década de 70 não ofereciam mínimas condições de manutenção da dignidade humana nem possibilidade de trazer de volta a saúde mental que direcionaria essa pessoa ao resgate de sua vida.


A década de 70 testemunhou o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que foi contemporâneo do movimento sanitário, o qual visava mudar os modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defendia a saúde coletiva e a equidade na oferta dos serviços, e a inserção dos protagonistas, usuários e trabalhadores dos serviços de saúde na gestão e produção de tecnologias de cuidado.


Em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), composto por trabalhadores que faziam parte do movimento sanitário, doentes psiquiátricos, familiares, e membros de associações profissionais.


A partir de então o MTSM passa a denunciar a violência presente nos manicômios, a mercantilização e exploração da loucura e a conscientizar expondo as críticas ao saber psiquiátrico institucionalizado e ao modelo hospitalocêntrico de atendimento às pessoas com doenças mentais.


No início de 1986 foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em São Paulo e no mesmo ano aconteceu o II Congresso Nacional do MTSM cujo tema foi “Por uma sociedade sem manicômios”.


Em 1989 a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de Santos interviu no Hospital psiquiátrico Anchieta alegando mortes e maus-tratos de pacientes, e implantou os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) então com a proposta de atendimento 24 horas.


Com esses acontecimentos históricos tiveram início no Brasil movimentos para regulamentar a Saúde Mental e oferecer cuidados e tratamentos mais dignos, humanos e efetivos aos portadores de transtornos psiquiátricos. Muito ainda precisaria ser feito para que as conquistas realmente se implantassem e fossem efetivas.


Em 1989 o deputado Paulo Delgado deu entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei para regulamentação dos direitos das pessoas com transtornos mentais e para a extinção progressiva dos manicômios no Brasil.


A partir de 1992 diversos movimentos sociais conseguem aprovar em diversos estados brasileiros leis que determinavam a substituição gradual dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental e então o Ministério da Saúde inicia um processo de definição de sua política para a saúde mental no Brasil.


Entram em vigor as primeiras normas federais que regulamentavam a implantação de serviços de atenção diária, baseadas nas experiências dos CAPS, NAPS e hospitais-dia além de normas para os hospitais psiquiátricos.


Os NAPS/CAPS foram oficializados com a Portaria GM 224/92, a qual, seguindo as diretrizes de descentralização e hierarquização das Leis Orgânicas do SUS, regulamentou a operacionalização e funcionamento de todos serviços de saúde mental no Brasil.


Essas unidades foram definidas como “unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar; podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental e atendem também a pacientes referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar”.


A Portaria GM 224/92 também proibia a existência de espaços restritivos e exigia que fosse preservada a inviolabilidade da correspondência dos pacientes internados e que fossem feitos registros adequados dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos efetuados nos pacientes.


Havia a regulamentação dos serviços mas ainda não havia uma linha específica de financiamento para os CAPS/NAPS e o necessário processo de redução dos leitos psiquiátricos e de desinstitucionalização de pacientes com longas internações só foi impulsionado com diversas normatizações do Ministério da Saúde a partir de 2002.


A Lei 10.216 (Lei Paulo Delgado) foi sancionada em 2001, com modificações, e dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo hospitalocêntrico vigente para tratamentos em serviços de base comunitária.


A partir dessa lei foi se consolidando a Reforma Psiquiátrica como política de governo, e novas linhas específicas de financiamento foram criadas pelo Ministério da Saúde para serviços abertos que substituiriam os hospitais psiquiátricos, e também houve aprimoramentos na fiscalização, gestão e redução programada dos leitos psiquiátricos no país.


Desde então várias leis e portarias estabeleceram e classificaram as modalidades dos CAPS, que tem papel estratégico na organização da rede comunitária de cuidados, deram diretrizes e normas para a assistência hospitalar, para as portas de entrada nos serviços e o modo de avaliação dos hospitais psiquiátricos integrantes do SUS, o auxílio-reabilitação psicossocial assistência, acompanhamento dos pacientes dentro e fora das unidades hospitalares, incentivo financeiro para implantação de serviços residenciais terapêuticos, diretrizes para prevenção do suicídio e o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas dentre outras ações que estabeleceram os parâmetros para a Saúde Mental nos moldes como funciona na atualidade.


Detalhando a proposta e modelo do CAPS, suas práticas devem ocorrer em ambiente aberto, acolhedor e na comunidade onde mora o paciente, e por vezes vão além da sede física potencializando a rede de suporte social, individualizando o sujeito, sua história, cultura e vida.


Todos trabalhos na unidade são realizados em um “meio terapêutico”, ou seja, tem finalidade terapêutica, através de várias modalidades. Há um projeto terapêutico para o usuário, e os profissionais envolvidos se tornam para ele terapeutas de referência.


Já que a vida é complexa, muito maior que as doenças que possamos ter, a realidade dos serviços de atenção psicossocial se mostra muitas vezes insuficiente para contemplar as solicitações singulares de cada usuário.


É necessária abertura e envolvimento de todos atores constituintes do processo, os técnicos, os usuários do serviço, familiares e toda a comunidade.


O CAPS, através de sua estruturação e possibilidade de oferecer vínculo, interação e trocas, deve articular o cuidado clínico e os programas para reabilitação psicossocial do usuário, sua reinserção social e a reconquista do protagonismo do paciente perante sua própria vida, em um trabalho conjunto com as equipes de Saúde da Família, os agentes comunitários de saúde e com os demais recursos sanitários, sociais, econômicos, de lazer, religiosos e culturais.


Como em outras áreas da saúde, além da saúde mental, enfrentamos problemas de diversas ordens: a ausência ou carência de políticas locais, de investimento nos CAPS, de falta de recursos materiais e humanos, falta de estrutura física, do próprio modelo médico e hospitalocêntrico de atenção, da judicialização da saúde, falta de integração entre os serviços, não adesão aos tratamentos, dificuldades com os familiares, os estigmas e preconceitos presentes na sociedade, dificuldades de reinserção social, dentre outros.


A loucura é uma característica da diversidade e uma manifestação da subjetividade humana. Por longo tempo a loucura foi invalidada e seus portadores excluídos.


Esse processo vem se transformando gradualmente com as medidas da Reforma Psiquiátrica, a qual é um processo social e político complexo e que avança lenta e gradualmente apesar de vários conflitos e dificuldades consolidando-se como política oficial do governo federal.


Apesar do longo caminho que falta ser percorrido para que os usuários de saúde mental tenham um atendimento efetivo e de excelência, já temos diretrizes e leis que norteiam os próximos passos.


O acompanhamento e fiscalização também dependem de cada um de nós.


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