Repórter de A Tribuna fica cego por um dia; vídeo

Jornalista passou horas sem enxergar e fez atividades no Lar das Moças Cegas, em Santos

Por: Júnior Batista  -  13/12/19  -  10:44

No Brasil, a última estimativa do IBGE aponta mais de 1,5 milhão de pessoas cegas. Hoje, Dia Nacional do Deficiente Visual, é tempo de renovar a solidariedade com essas pessoas. Por isso, me propus a passar algum tempo de olhos vendados, nos treinamentos pelos quais passam os assistidos pelo Lar das Moças Cegas, quando chegam à instituição.


A experiência foi acompanhada pela professora Valéria Cristina da Silva Teixeira, de 51 anos (que tem apenas 3% de visão, ressalta-se). Pouco mais de duas horas foram suficientes para surgir um outro mundo, que exige uma força descomunal para querer continuar vivendo.


Ainda que estivesse em ambientes seguros, com uma professora ao meu lado, algumas situações – como a chegada ao refeitório e a caminhada na rua – me fizeram sentir uma vulnerabilidade inédita.


Primeiro, Valéria explicou as etapas que eu passaria: reconhecimento de objetos, com ela; a sala de música, com o professor Gabriel Geovany Cesar; o uso da bengala; a vivência num apartamento funcional, com a professora Sueli Aparecida Ferreira Pinto e, finalmente, o almoço com outros assistidos.


Primeiros passos


Meu primeiro desafio foi reconhecer objetos e tecidos. Pelo tato, eu identificava os iguais e os ligava. A importância do exercício, segundo Valéria, é que intensifica o tato do aluno. “Também serve para o cego entender as diferenças entre as peças, reconhecer tapetes, esponjas”.


Primeiro, reconheci peças de tecidos variados
Primeiro, reconheci peças de tecidos variados   Foto: ( Matheus Tagé/AT)

Depois, reconheci a bengala. Com ela, andaria pela entidade, sempre à direita, me explicou – a referência do cego é a parede, onde se apoia, especialmente no início.


O caminhar foi lento. No escuro, a confiança em andar diminuiu, mesmo com Valéria ao lado. A sensação era de que eu cairia a qualquer hora. Só de saber que havia escadas, já me imaginava caindo. Mas o fato de Valéria estar o tempo todo falando, explicando cada passo, me tranquilizou.


“A conversa também faz parte do tratamento. O luto e a falta de vontade de sair do lugar precisam ser respeitados em cada um. Por isso, a avaliação individual do aluno é tão importante”.


Fui me sentindo mais confiante. Aprendi a reconhecer o chão com a bengala. É assim que se localiza os pisos táteis. Sabe aquelas faixas, na rua, que parecem uma pecinha de lego? São guias que servem de proteção e um norte para saber onde se está e aonde ir.


Música


Cheguei à aula de música. Havia um bumbo e um violão. Aprendi a ouvir os sons de instrumentos e tocar o bumbo junto com eles. Pouco mais de 30 minutos com a venda, eu seguia melhor os sons. Valéria explicou que a audição naturalmente vai ficando mais aguçada. O cérebro entende que um sentido foi retirado e outro precisa ser “melhorado”.
As escadas, que eu temia, pareciam não acabar nunca. Comecei descendo um degrau por vez, mas ela me incentivou a ir um pé em cada degrau. A tarefa simples me deixou morrendo de medo.


Na aula de música, um pouco mais de descontração
Na aula de música, um pouco mais de descontração   Foto: ( Matheus Tagé/AT)

Apartamento


Também tive uma experiência em um apartamento funcional. Há cama, guarda-roupas, fogão. A professora Sueli me explicou que faz os deficientes reconhecerem objetos e se guiar no espaço. Lá, ela também falou da alimentação, que fica separada no prato do mesmo jeito, com a carne mais próxima do corpo.


Almoço


Entrar no refeitório foi desesperador. O silêncio deu lugar aos sons de muitas conversas. A sensação era de que o local era imenso.


Quando comecei a conversar com outros alunos, estimulado por Valéria, me soltei. Seu Divaldo, um senhor de 66 anos que mora sozinho, me inspirou. Ele perdeu a visão por causa de uma toxoplasmose e ficou com depressão logo após. Hoje, está recuperado. “Não adianta ficar para baixo, rapaz”.


Comi devagar. O peso era a referência de quanta comida havia no garfo. Não tinha referência de corte, uns pedaços de carne saíam grandes, outros pequenos. A salada foi misturada em tudo.


Ficar sem enxergar é desesperador, mas com o acolhimento, a cegueira pode ser amenizada. É claro, a vida nunca mais será a mesma, mas saber que se pode contar com outras pessoas faz a adaptação à nova vida tornar-se bem mais fácil.


Seu Divaldo, um exemplo de vida
Seu Divaldo, um exemplo de vida   Foto: ( Matheus Tagé/AT)

Glaucoma


Eu tenho 28 anos. Descobri, em fevereiro, que tenho glaucoma. O oftalmo me explicou que não preciso me desesperar, mas tenho que controlar minha pressão intra-ocular. Uso colírio duas vezes ao dia para isso. Descobri essa pressão ainda novo, aos 11, mas o oftalmo não me deu o diagnóstico correto, apenas corrigiu a pressão na época. Me desesperei de medo de perder a visão e, quando saí do consultório aquele dia chorei bastante. Meu problema é genético, pois minha avó paterna tem o problema. Hoje, embora não tenha certeza de nada, estou muito mais cuidadoso e preocupado com minha saúde. Mais do que isso, a partir de agora vou valorizar muito mais meus sentidos e reclamar menos dos outros problemas, que certamente se tornaram menores.


Valéria, os meus olhos durante a experiência
Valéria, os meus olhos durante a experiência   Foto: ( Matheus Tagé/AT)

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