Pintura de Calixto pode dar pistas a destroços de navio no Canal 5

Detalhes de obra que retrata encalhe de embarcação passaram despercebidos. Estruturas da embarcação são visíveis sempre que há o recuo da maré

Por: Sérgio Willians & Colaborador &  -  09/08/20  -  17:15
Os destroços do misterioso navio ao lado do Canal 5 aparecem com o recuo da maré
Os destroços do misterioso navio ao lado do Canal 5 aparecem com o recuo da maré   Foto: Carlos Nogueira/AT

Peço licença aos meus leitores para, hoje, fugir à estética literária que permeia nosso trabalho. Ocorre que, às vezes, em nossas investigações obstinadas, nos deparamos com descobertas tão empolgantes que elas só nos remetem à vontade ensandecida de compartilhá-las. O fato em questão foi estimulado pelo retorno à mídia do caso do "misterioso navio" enterrado próximo ao Canal 5, em Santos. Em 2017, quando o tema ocupou as manchetes de jornais e sites mundo afora, alguns jornalistas me procuraram, acreditando que eu ajudasse a elucidar a pergunta que não queria calar: os restos são de qual embarcação? Glória, Nanny, Kestrel, Elitel Fritz, Madonna Della Costa? Ou nenhuma dessas?


A memorialística naval nunca foi meu foco, apesar de já ter me debruçado sobre alguns casos curiosos, como os do Cap Arcona, do Windhuk, do Al-Johffa, do Lorina ou de algumas visitas inusitadas ao Porto de Santos, como as embarcações da força naval norte-americana em 1953 ou da esquadra japonesa em 1921. Quem me conhece sabe que, quando não tenho elementos fundamentados para externar teorias, não o faço. Simplesmente indico pesquisadores mais gabaritados. No caso do navio encalhado, a escolha foi óbvia, a do jornalista José Carlos Silvares, autor do livro Naufrágios do Brasil, lançado em 2010.


A enigmática obra de Calixto pode dar pistas sobre o navio encalhado no Canal 5
A enigmática obra de Calixto pode dar pistas sobre o navio encalhado no Canal 5   Foto: Reprodução

Assim, me tornei apenas um espectador da evolução do caso, observando até o ingresso do competente arqueólogo Manoel Gonzalez na “brincadeira”. Profissional de respeito, ele e sua equipe fizeram várias coletas que os levaram a defender a identidade do navio como sendo o veleiro inglês Kestrel, que encalhara nas areias da outrora Praia do Boqueirão (atual Praia do Embaré) no final de uma tarde tempestuosa em 11 de fevereiro de 1895. Uma história mal contada, pois o navio estava sem sua tripulação e comando. A bordo, apenas três homens inexperientes: um cozinheiro, o despenseiro e um marinheiro grumete, sem traquejo algum na lida do mar. O restante da tripulação, incluindo capitão, contramestre e piloto, estava em terra. Isso sem falar que o rebocador Rápido, da Praticagem, conseguiu chegar a tempo de oferecer socorro, que foi recusado.


Com o ressurgimento dos destroços durante este período pandêmico e volta do tema às manchetes, novamente fui procurado por jornalistas ávidos por novidades. Mais uma vez, indiquei o amigo Silvares. Porém, desta vez, o assunto despertou-me uma vontade. Por que não escrever sobre cada um dos casos que viraram suspeitos na origem da descoberta?


Uma inusitada descoberta


Resolvei começar pelo suspeito principal, o inglês Kestrel. Pesquisei jornais da época, relatos de outras pesquisas e registros de navios em sites internacionais. Mas, foi em busca de imagens da embarcação que acabei me deparando a uma situação interessante. Não sei por qual motivo, mas eu lembrava de ter visto um quadro de Benedicto Calixto que retratava um veleiro encalhado nas praias de Santos. Obviamente não se tratava do Glória (outro suspeito do Canal 5), uma vez que ele era um pequeno vapor. O que havia visto era, de fato, um veleiro. Após buscas na internet, encontrei o que lembrava ter testemunhado. No entanto, o título do quadro era O Encalhe do Veleiro Caldbeck em Praia Grande.


O inusitado da situação era que o referido site (o famoso Novo Milênio, do genial jornalista Carlos Pimentel Mendes) demonstrava duas obras de Calixto com o mesmo título, catalogados como sendo o do encalhe do veleiro inglês Caldbeck ou Caldebeck. No entanto, havia algo gritante aos meus olhos naqueles desenhos: a topografia. Quem conhece Praia Grande sabe que, olhando na direção do Oceano Atlântico, o único acidente geográfico local é a formação da Ponta de Itaipu, à esquerda. Olhando para o lado oposto, à direita, a vista é de quilômetros de faixa de areia (daí a alcunha Grande). Em um dos quadros de Calixto, a cena está correta. O barco está com a proa voltada ao espectador (na direção do Itaipu) e a popa voltada para o quase infinito trecho de praia.


Porém, no segundo quadro, o acidente geográfico está à direita da imagem, com o adendo de alguns detalhes a serem observados. Primeiro: a Ponta do Itaipu está muito adentro do mar, o que só ocorre se relacionada à sua posição na Baía de Santos. Segundo: Calixto não iria fazer um desenho na direção oposta. Terceiro: há uma formação que se assemelha a uma ilha na imagem, no primeiro plano da extrema direita. É a Ilha Urubuqueçaba. Uma segunda formação mais à frente remete à Ilha Porchat. Ademais, os veleiros retratados nos dois quadros não se assemelham perfeitamente e uma das obras traz vários mastros partidos na areia. Calixto poderia ter produzido os quadros em momentos diferentes, mas não acredito nessa hipótese. Para consolidar a afirmação, achei um velho cartão postal que retratou fotograficamente o encalhe do Caldebeck.


Pimenta no caldo misterioso


Entusiasmado com a constatação a partir dos pressupostos geográficos, posso afirmar que em algum momento os catalogadores das obras de Calixto se enganaram ao afirmarem ser o veleiro Caldebeck o retratado no quadro que mostra os mastros partidos na areia. Para mim, certamente se trata do famoso Kestrel, não só por suas dimensões (o Nanny era muito maior), mas por seu posicionamento na areia, alinhado aos relatos sobre o encalhe descritos na imprensa da época.


Vale lembrar que ainda nem sonhavam construir o Canal 5 (na verdade, o engenheiro Saturnino de Brito já sonhava com isso, mas o canal estava apenas no papel). De uma forma ou de outra, ofereço a partir destes estudos e deste artigo que a imagem que reputo como sendo a do veleiro inglês Kestrel, aqui publicada, componha o imaginário santista acerca dos misteriosos destroços que atiçam a fantasia dos passantes da Praia do Embaré.


Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça seu trabalho no site www.memoriasantista.com.br


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