Humilhação, tortura e prisão: Crimes nunca reparados no Porto de Santos

Ex-trabalhadores pedem apuração rigorosa de inquérito que investiga perseguição no cais santista

Por: Maurício Martins  -  28/09/20  -  12:01
Março de 1980: A Tribuna mostra a primeira greve de trabalhadores no Porto, ainda sob a ditadura
Março de 1980: A Tribuna mostra a primeira greve de trabalhadores no Porto, ainda sob a ditadura   Foto: Reprodução

Humilhação, perseguição, prisão,tortura.As graves violações de direitosdos trabalhadores portuários jamais sairão da memória daqueles que viram a então Companhia Docas de Santos(CDS)se tornar um órgão de repressão quandoa ditadura militar tomou o poder no Brasil, em1964, o que durou até 1985.Masquem passou por issoquermais do quelembrançassombrias:exige que CDSreconheça e repare seus erros.


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Em novembro de 1980, a CDS, pertencente à família Guinle, deixou de administrar o Porto, devido ao término da concessão que detinha. Essa atribuição passou ao Governo Federal, que criou a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) para tal função. No ano passado, essa estatal passou a se chamar Santos Port Authority (SPA).


O advogadoNobel Soares, de 74 anos, entrou na Docas no auge da ditadura, em 1968,para o cargo de fiel de armazém ajudante, umaespécie de gerente do espaço que estocava mercadorias.Foi demitido em 1980 por ter organizado a primeira greve dos trabalhadores do Porto.


“A repressão era muito forte, as pessoaseramproibidasdemanifestarpensamentos,fazerreuniões, tudo erasujeito à prisão.Os trabalhadores nãoconfiavamuns nos outros, ninguém compartilhava informações, com medo”, lembra.


Segundo ele, a Guarda Portuária se tornou um braço da ditadura no Porto e passou a ser comandada pela polícia estadual. “Essa guarda faziasuainvestigaçãointerna, com agressãofísicaa trabalhadores, quandosuspeitava da prática dealgumato, sejapolíticoou furto demercadoria. Havia,dentro daempresa,um setor ondepessoasficavamencarceradas”.


Antônio Fernandes Neto, 68 anos, trabalhou como estivador entre 1978 e 1982. Foi reprovado em um concurso na Docas, segundo ele, por perseguição política, já que era questionador do governo militar. Ele afirma ter documentos que provam isso.


“Os trabalhadores levavam porrada mesmo, erampresos. Isso era para criar um clima de terror e impor as piores coisaspossíveis. Trabalhávamoscom produtosquímicose cancerígenos,sem nenhuma proteção, muitasvezesde cuecas”.


Inquérito parado


Em 2018, uma representação assinada por vários sindicatos foi protocolada no Ministério PúblicoFederal (MPF)pedindo investigação.Um inquérito civil foi aberto,sendo de responsabilidade do procurador da República em Santos, RonaldoRuffoBartolomazi.Em dois anos, porém, ainvestigaçãoficou praticamente parada.


Apenas emjulhodeste ano, o procuradorenviou ofícios pedindo informações sobre o caso a diversos órgãos.Bartolomazinão atendeu ao pedido de entrevista feito por A Tribuna. Em nota, o MPF disse o procedimentoestá em andamento.


“Foram solicitadas informações à Autoridade Portuária de Santos, à Câmara dos Vereadores de Santos, à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e ao Arquivo Nacional. Todas as instituições já responderam e, agora, as informações obtidas estão sob análise”, diz a nota.


“Que se faça uma investigação rigorosa de quem praticou esses atos aliados ao regime militar, seja porque financiaram o regime militar, seja porque colaboraram com atos de repressãopolítica,colocandoaprópriaGuardaPortuáriaa serviço daditadura.Buscamos areparação dos atosque vitimaram centenas detrabalhadores portuários”, diz Nobel Soares.


Antônio Neto afirma que é preciso que os crimes sejam reconhecidos. “Violência contra os trabalhadores, usar veículos da companhia para prender pessoas. O que era tarefa do Estado: investigar, prender e levar a julgamento, a Docas fazia por conta dela. Reduziram em mais de 50% os ganhos dos trabalhadores. Para isso, reprimiram, prenderam, bateram e demitiram”.


A denúncia


Conforme a denúncia, a família Guinle, por meio da CDS, e outras empresas, financiaram a criação do Instituto de Pesquisas eEstudosSociais (Ipes), em 1961, o órgão que planejou e executou com os militares o golpede1964.


Na primeira semana de ditadura, mais de 400 pessoas foram investigadas e 125 processadas pela Justiça Militar posteriormente,porcontadadeflagração de greves e mobilizações para defender o interesse dos trabalhadores. A sala onde eram feitos os inquéritos policiais militares (IPMs)ficava na própriaCDS e era chamadade IPM da Orla do Cais.


Por meio de nota,aSantosPortAuthority(SPA)disseque “desconhece informações a respeito de eventuais atos de repressão que teriam sido cometidos pela Companhia Docas de Santos( CDS), empresa privada que administrou o Porto de Santos, em regime de concessão, até o ano de 1980”.


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