Crianças na pandemia: Medo, ansiedade e depressão são riscos silenciosos

Crianças normalmente dão sinais de que algo não vai bem e despertam cuidados

Por: Jean Marcel  -  23/11/20  -  12:47
Alterações no sono, apetite ou comportamento são sinais que algo pode estar errado
Alterações no sono, apetite ou comportamento são sinais que algo pode estar errado   Foto: Imagem Ilustrativa/Freepik

Júlia (nome alterado para preservação de privacidade) tem 5 anos, é uma menina com cabelos bem clarinhos, muito falante, sorridente, olhos claros e brilhantes, e adora brincar e conversar com sua boneca preferida, que tem desde bebê, a Pituca. Em junho deste ano, alguns meses após o início da quarentena, sua mãe, Bárbara (nome também alterado) flagrou Júlia contando para Pituca "que estava muito triste, e que não era pra ela ir embora por causa disso". Em conversa com a filha, a mãe, atenta, descobriu que a pequena se sentia muito mal por não poder brincar com os amigos da escolinha e nem por ver os avós, muito menos enchê-los de abraços, como sempre adorou fazer.


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O que ocorreu com ela tem sido muito comum, porém nem todos os pais percebem mudanças, às vezes pequenas, nas crianças. De acordo com Thalita Lacerda Nobre, Dra. em Psicologia Clínica pela PUC-SP, e professora de graduação em Psicologia e Mestrado em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Unisantos, os problemas que mais podem atingir crianças por conta do isolamento social, em geral, são os relacionados à ansiedade. "As crianças tendem a ficar mais estressadas, frustradas ou até mais agressivas", explica.


Em geral, segundo Thalita, cada faixa etária tende a viver a situação de isolamento de uma forma diferente. Entre aproximadamente 1 e 5 anos, ocorre frustração e medo. Entre 6 e 9, em média, são problemas com a forma de organização e ansiedade, mas elas conseguem internalizar e nem sempre é perceptível, assim como pré-adolescentes. Estes, porém, até podem manifestar sintomas de depressão.


No caso da pequena Júlia, sua mãe detectou o medo que ela tinha de perder os amigos por conta do isolamento, e procurou ajuda. Thalita explica que alguns sinais normalmente podem indicar que há algo errado com os pequenos. A primeira alteração normalmente é a criança ter sono, depois a perda ou alteração do apetite, e por fim, o comportamento. "Reparar se está mais impaciente, agressiva, brigando mais com irmãos, ou mais quieta, ficando em cantos, em silêncio", detalha a psicóloga. "Outra coisa que tem acontecido muito, são os pesadelos, os medos, acordar várias vezes à noite ou fazer xixi na cama acima do normal. Isso tudo pode ser um alerta para os pais", completou.


Medo de Sair de casa


"Não dá pra dizer que o medo de sair de casa seja um transtorno psicológico, mas até poderá ser - caso persista por muito tempo ou atrapalhe -, por exemplo, o sono, através de pesadelos que podem refletir o medo da morte por contaminação do coronavírus. Dela ou de algum parente. Mas normalmente é só um medo, às vezes até um pouco mais intenso, comum a todos nós que passamos pela pandemia e vemos tantas mortes sendo divulgadas nos noticiários", esclareceu Thalita.


A forma como são ou reagem os pais diante de tudo que estamos vivendo também influencia o comportamento das crianças. O ideal é que os pais não fiquem 'aterrorizando' os pequenos com seus medos, ou, caso a criança já esteja muito assustada, diminuir a tensão usando frases como "Vamos passar por isso juntos, estamos aqui, está tudo bem, apesar de tudo isso estamos nos cuidando e estamos bem", ou algo parecido, orienta a psicóloga.


Experiências


Ana Paula (nome alterado) disse que no início na quarentena inventou com seu filho Ricardo (nome também alterado), de 7 anos, várias brincadeiras para passar o tempo, já que estava em casa, no trabalho remoto. Logo, a mãe percebeu o refúgio do pequeno Ricardo na televisão, desânimo e já não haviam mais ideias para as brincadeiras.


O menino sentia-se sozinho e chegou a pedir um irmão para poder brincar. Ele comentou ainda estar chateado por não haver uma vacina para a Covid-19 e ele poder voltar à rotina. A preferência pelos desenhos foi trocada por vídeos de youtubers. Ao notar que algo não estava indo bem, Ana Paula conversou muito, reduziu o tempo de TV e promoveu mais proximidade com os primos e a avó, que aliás, diz Ana Paula, ajudou muito.


Como eles têm vários animais de estimação, a jovem estimulou essa convivência também, assim como experiências científicas e trabalhos manuais. Com o tempo, o pequeno Ricardo foi contornando a situação e até amadurecendo. Hoje já estão até mais próximos e conversam muito. "Mas teve um momento, no início da pandemia, quando nos fechamos em casa, que eu achei que não só ele, como eu também pudesse precisar de ajuda psicológica. Graças a Deus conseguimos contornar isso", conta Ana Paula.


Outra pessoa que tem experiência semelhante é Kátia (nome alterado), que é separada e mora com seu filho de 11 anos, o Felipe (nome também alterado). Ela é contabilista e não encontrou solução sobre onde deixar Felipe enquanto trabalhava, já que ele ficava em tempo integral na escola, e com a pandemia está em casa. "O pai mora no sul, e não tenho parentes. Alertei a vizinha mas ele fica boa parte do dia sozinho em casa", disse ela. 


A contabilista vem na hora do almoço, e chega em casa por volta das 19h. Em boa parte da manhã e tarde, Felipe está sozinho. Nas manhãs tem aula remota, e à tarde fica jogando videogame ou na internet. Com alguns meses de isolamento, ela percebeu o filho mais calado, desanimado para as saídas nos finais de semana, e não fazer mais questão de passeios ou atividades juntos. "Nunca procurei ajuda de profissionais, mas conversei com vários amigos e mudei minha rotina. Procurei 'entrar no mundo dele', jogamos juntos, assistimos coisas juntos, e aos poucos consegui nos aproximar novamente. Hoje o Felipe me conta tudo que sente. Foi um alívio pra mim, mas já estava quase procurando ajuda de um psicólogo", externou Kátia. 


As crianças na pandemia


A psicóloga Thalita Nobre explica que crianças interiorizadas por conta da falta de socialização é algo que tem acontecido muito. Em geral, nas crianças menores isso é mais fácil de ser observado, porém elas podem suprimir interagindo com quem está em casa. Acima dos 7 ou 8 anos e até para os pré-adolescentes, é justamente quando eles valorizam mais a socialização fora de casa. Elas sentem falta das conversas em classe, do recreio, da bagunça, das brincadeiras, e não tendo, ela pode ter problemas.


"Há pais que sentiram isso e criaram grupos, fazem transmissões ou até festas conectados. Conheço até crianças que fazem aulas de balé online, todas juntas. Assim elas interagem, vêem as amigas e isso pode minimizar o afastamento", completou a psicóloga. Para que não chegue num ponto em que precise um atendimento profissional ou que a criança tenha danos, ela também aconselha que os pais exercitem a paciência. Também proporcionar algum tipo de atividade física, mesmo em casa, pois elas estão em desenvolvimento dos ossos, músculos, e cérebro, claro. Atividades físicas são importantes.


Ajuda gratuita


A psicóloga lembra que, assim como na Unisantos, onde atua, há clínicas universitárias (e que já retornaram com os atendimentos). Existem também opções gratuitas ou com 'valores sociais' bastante acessíveis, e caso seja percebida alguma mudança repentina e persistente na criança, é aconselhável procurar um profissional. "O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial Infantil) da prefeitura de Santos, também funciona para poder suprir essa contingência". O Caps Infantil de Santos é voltado para crianças e adolescentes menores de 18 anos e funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h. Informações pelos telefones 3271-8235 e 3221-4944.


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