Na infância, a facilidade com a Matemática o levou à Engenharia. E foi na própria Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que Hélio Antonio do Couto Filho, o Hélio de La Peña, lançou os alicerces do que o definiria: o humor, sempre bem calculado – sem trocadilhos.
Junto com os colegas de UFRJ Marcelo Madureira e Beto Silva, fundou em 1978 o fanzine Casseta Popular – sendo ‘casseta’ uma brincadeira com ‘gazeta’. Essa ‘veia’ jornalística seria um dos pilares da revolução no humor que a trupe promoveria a partir de meados da década seguinte, já vitaminada pelos integrantes do jornal Planeta Diário – Hubert Aranha e Reinaldo Figueiredo.
Bussunda e Cláudio Manoel se juntariam à trupe pouco depois, formando o grupo que explodiria no Brasil com o programa televisivo Casseta e Planeta, Urgente!, a partir de 1992.
Nesta entrevista, Hélio fala sobre a homenagem prestada ao Casseta e Planeta no Festival Geek, neste final de semana, em Santos. Também relembra o início na Globo, como roteirista do icônico TV Pirata, além de analisar as particularidades do humor brasileiro e apontar o racismo, historicamente presente até quando o assunto é fazer rir.
Como é receber homenagem de um festival geek?
É uma surpresa. A gente associa a cultura do nerd, da garotada, e de repente o Casseta e Planeta está inserido nesse contexto. Por outra lado, há a referência do Casseta e Planeta para tantos profissionais da comédia hoje, no Brasil. A gente começou em 1978 fazendo um jornalzinho; em 1988, a gente estreou na TV Pirata, transformando a linguagem do humor na tevê. O Casseta e Planeta foi o programa de humor mais contundente da tevê. Trouxemos as inovações que já havíamos introduzido no TV Pirata, mas um formato novo. A atual geração por certo bebeu na fonte do Casseta e Planeta e isso nos dá muito orgulho.
De onde veio a inspiração para esse humor peculiar do Casseta e Planeta? O fato do Brasil já estar vivendo fora de uma ditadura ajudou?
Sim, viver fora da ditadura ajudou, mas sobretudo o fato de ter vivido uma ditadura e estar num processo de saída. A audiência estava sedenta em romper as barreiras e estava aberta ao novo. Quanto à inspiração, o TV Pirata é o primeiro programa escrito por uma geração que cresceu vendo televisão e não ouvindo rádio. Essa é a grande diferença. A nossa referência era a televisão, enquanto Jô, Chico Anysio tiveram uma infância e adolescência no apogeu do rádio. Era natural que a linguagem do programa deles se aproximasse do que se fazia no rádio.
Qual era, na prática, essa diferença?
Um exemplo: quando os programas anteriores faziam uma brincadeira sobre determinado comercial, eles faziam uma esquete no formato em que estavam acostumados. Um comercial marcante de 30 segundos, como esquete, teria um quadro de 5 minutos. A gente estava acostumado a fazer coisas próximas: o conteúdo da Casseta Popular e do Planeta Diário era de humor, mas copiava o formato dos jornais e revistas tradicionais. Quando fomos para a tevê, levamos essa ideia. Assim, ao fazer a paródia de um comercial, fizemos no mesmo formato, durando 30 segundos. Isso era uma novidade absoluta.
Qual era a diferença principal entre a TV Pirata e o Casseta e Planeta, Urgente!
A TV Pirata tinha um bloco de atores muito versáteis, o que não era o nosso caso. Quando a gente foi fazer o programa, a gente pensou em um formato mais confortável pra gente: a estrela principal do nosso programa era a notícia. Era como as pessoas viam a notícia e a nossa interpretação dela.
As fake news seriam o absurdo levado a sério?
Existem duas categorias diferentes: o humorista e o político. O humorista mente para divertir a plateia, distrair o povo. Cria às vezes uma linha de raciocínio absurda. Existe um livro muito bom, O Autor Mente Muito, de Carlos Sussekind e Francisco Daudt, em que eles colocam que o autor é um grande mentiroso. Mas, na ficção, às vezes, pela mentira acaba-se chegando à verdade. No caso do político, é diferente: ele mente para conquistar o poder. O que eu acho injusto nessa história toda é que o comediante, que mente para distrair, é cobrado: as pessoas querem que ele fale a verdade, mas o político pode mentir à vontade e você continua votando nele.
Como você vê, para o humor, o que se convencionou chamar de ‘politicamente correto’?
As pessoas querem uma resposta absoluta pra tudo, mas tudo é relativo. Algumas situações realmente são questionáveis. A sociedade evolui, muda o ponto de vista – isso é um lado. Outro lado é quando o humor é levado muito a sério e perde a graça, porque as pessoas querem que o humorista esteja todo momento vivendo a verdade. Você tanto pode fazer quadros de humor em que quebre a lógica vigente, como pode fazer o quadro em que se exagera a lógica vigente. Um exemplo é da própria TV Pirata, o TV Macho, em que o Zeca Bordoada, interpretado pelo Guilherme Karan entrevista uma chefe de torcida do Botafogo, interpretada pela Regina Casé. A personagem está com o olho roxo e ele pergunta: ‘O que você acha da violência no futebol?’ Ela: ‘Eu acho que tá pouca. O pessoal tá batendo pouco’. Isso hoje em dia seria visto como uma apologia à violência, mas essa visão é burra, porque na verdade a gente estava fazendo um exagero para mostrar o absurdo que é ter violência no futebol. Esse erro de interpretação acho que vem muito do baixo nível de educação. Por outro lado, é natural que se estabeleça que ninguém tolera mais o racismo, a misoginia, a homofobia. Então, quando o humor quer reforçar esse estereótipo, ele é rechaçado pela sociedade.
Como você vê a questão do racismo no humor brasileiro?
Tem mais humoristas pretos produzindo material. E eles, fazendo humor sobre o racismo, vão dar um ponto de vista diferente do que uma pessoa branca que nunca passou por aquilo. Recentemente, fui fazer um show com uma amiga minha, uma menina chamada Ivete Brito, uma comediante espetacular. Ela tem uma história de vida diferente da maioria dos comediantes e das comediantes atuais. Ela foi uma agricultora no interior da Bahia até os 18 anos, foi pra São Paulo e virou empregada doméstica, babá. Ela queria mostrar com o stand up dela a experiência de ser uma empregada doméstica e ficava preocupada: como as pessoas que nunca visitaram a área de serviço da própria casa delas vão encarar isso? Vão achar que ela está acusando essas pessoas? E ela só está querendo fazer humor. Quantos quadros sobre empregadas já foram feitos? Zilhões. Agora, quantas pessoas que tiveram a experiência de ser empregadas escreveram sobre isso? É raríssimo. Ela traz o lugar de fala. Não é que outras pessoas estejam proibidas de fazer quadros de empregada, mas é que ela, por ter essa experiência, trará propriedade. A questão do negro: por isso digo, a minha relação com o humor é diferente da dos comediantes negros que vieram antes de mim, que não tinham poder de escrita. Eu era o autor do programa. Já os comediantes negros tinham que acatar o que fosse escrito e fazer o quadro que uma pessoa branca pensou.
De certa forma, a televisão ‘enquadra’ o humor?
A televisão reflete o comportamento da sociedade. Hoje, os programas têm mais liberdade do que havia. Agora, a sociedade, de maneira geral é conservadora. O que queria a tevê? Queria audiência e não que se ficasse falando com aquela meia dúzia que entendia e perdesse a grande massa, que achasse um absurdo e um despudor. Às vezes, é preciso ser ousado para ir além do que a sociedade inicialmente rejeita, porque não conhece, para apresentar algo que seja novo.
Quem traz mais frescor ao humor brasileiro hoje?
Porta dos Fundos é uma grandiosidade. Mas também tem hoje uma produção de humor inusitada nos memes. Um exemplo mais próximo que a gente tem disso, o daquele homem que se agarrou ao parachoque do caminhão. Quantos memes você já viu sobre aquela situação e quem são os criadores? Não se sabe: é uma criação anônima que está aí. Se hoje temos menos programas de humor na tevê, há uma produção muito fértil na internet.
Diz-se que todo grande humorista é, no fundo, uma pessoa triste. Quem é o Hélio?
Não sou triste, não. Muitas vezes você está triste, mas sua arte é apresentar o humor, e não necessariamente você está com aquela alegria que representa. Um caso recente, o do Robin Williams, aquela explosão de alegria, e hoje a gente sabe o grau de depressão em que ele vivia. Eu prefiro fazer humor quando estou bem de vida, Agora, se precisar, faço humor na tristeza. Duas semanas da morte do Bussunda, em 17 de junho de 2006, estávamos numa tristeza tremenda, produzindo um Casseta e Planeta para colocar no ar.